ENTREVISTA » JOSÉ BRANDÃO NETTO

“As coisas só funcionam na marra”

Publicado em 24.10.2010


Ele é o homem por trás da polêmica que rompe os limites da Bahia para ganhar debates ao redor do Brasil. O juiz José Brandão Netto diz que pôs o nome de toque de acolher na medida para tirar o tom pejorativo inerente ao toque de recolher, que inspirou a norma. Excêntrico e sem meias palavras, afirma que as coisas no Brasil só funcionam “na marra” e acredita na educação como único caminho. Brandão Netto conversou por telefone com o Jornal do Comércio (JC), de Pernambuco.


JC – Como surgiu a ideia do toque de acolher e qual seu objetivo?

JOSÉ BRANDÃO NETTO – Na verdade, essa ideia nasceu em 1996 na cidade de Imperatriz, no Maranhão. Nós a adaptamos, demos o nome de toque de acolher e trouxemos de forma pioneira para a Bahia em maio de 2009. O objetivo central é restringir os horários de crianças e adolescentes estarem sozinhos nas ruas. São 75 mil pessoas nos municípios de Santo Estêvão, Ipecaetá e Antônio Cardoso. Esta medida está revolucionando a Bahia inteira. Já recebemos mais de 30 mil assinaturas de outras 18 cidades baianas pedindo a mesma norma. O assunto já está sendo discutido em Sergipe e Alagoas.


JC – Por que o nome toque de acolher?

BRANDÃO NETTO – Chamamos assim para suavizar. O toque de recolher tem uma conotação pejorativa, remete a governos autoritários ou traficantes. E tem sido como se inaugurássemos um novo Judiciário. A violência juvenil caiu quase 70%. Refiro-me aí não apenas ao infrator, mas também às vítimas. É, antes de tudo, uma medida protetiva, que protege o jovem da pedofilia, drogas, bebida alcoólica, prostituição, tráfico, roubos, furtos e homicídios. Não queremos punir ou criminalizar.


JC – Qual o resultado até agora da medida?

BRANDÃO NETTO – Até maio do ano passado, a média era de 30 crimes por mês. Caiu para 10 nos meses restantes. Este ano, tivemos 119 ocorrências no primeiro semestre, contra 183 no mesmo período de 2009.


JC – Como a educação se insere nesta medida?

BRANDÃO NETTO – Para não ficar só nisso, comecei a pesquisar como andava a educação na comarca. Não é só botar a criança em casa. Fizemos um levantamento na Delegacia de Santo Estevão e atestamos que 94% dos crimes cometidos por menores de 18 anos envolvem analfabetos ou gente que saiu da escola. De 75 ocorrências registradas em quatro meses, 71 se encaixavam aí. O povo quer atitude. A coisa está assim no Brasil todo e ninguém faz nada. Por isso, para complementar o toque de acolher, criamos uma portaria chamada toque de estudo e disciplina, que entrou em vigor em abril deste ano. Tivemos uma redução de 20% na evasão escolar em Santo Estevão. Já em Antônio Cardoso o número de alunos dobrou. Nas escolas de Ipecaetá, as matrículas aumentaram em 30%. Com isso, a gente combate a evasão escolar e, por consequência, a criminalidade. A gente obriga a matrícula de crianças dos 4 aos 17 anos. Além disso, proibimos o uso de celulares, walkman, MP3 e derivados em sala de aula, assim como é obrigatório nos colégios a execução do Hino Nacional uma vez por semana.


JC – O que fazer para garantir a aplicação desta medida?

BRANDÃO NETTO – Fiscalizamos nas escolas. É simples. Basta ver a frequência escolar. Os pais que descumprem a norma são responsabilizados por abandono intelectual, crime previsto no artigo 246 do Código Penal, que dá pena de 15 dias a um mês de prisão. Há também aplicação de uma multa de três a 20 salários mínimos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).


JC – O projeto envolve só as crianças?

BRANDÃO NETTO – Não. Estamos mandando adultos de volta para as escolas também. Nos incomoda ver um adulto analfabeto. Essas pessoas de cidades pequenas tratam do sexo como se fossem animais. A gente vê muitos casos de abuso sexual entre pais e filhos, entre irmãos. Isso é falta de educação, de informação, de escola.


JC – Há um mês, dois irmãos, de 25 e 18 anos, foram presos por estuprar a sobrinha de 8. Ambos são analfabetos. Um deles, que desistiu do ato, poderá ficar fora da cadeia se for matriculado em uma escola. O senhor acredita que isso funciona?

BRANDÃO NETTO – A família toda é analfabeta. A única que estudava era a criança, que agora está desvirtuada psicologicamente por conta do crime, chegando até a atacar coleguinhas na escola. Está tendo acompanhamento médico e psicológico. Os pais da vítima terão que se matricular numa escola, sob pena de descumprir uma ordem judicial. No Brasil, as coisas só funcionam na marra. O acusado mais velho está preso e pode pegar de oito a 15 anos de reclusão. Veremos um jeito de ele estudar na prisão. O mais novo não chegou a abusar da sobrinha, pois desistiu quando viu a menina sangrando. Ele será liberado quando se matricular numa escola. A educação é o caminho.

0 Comentários