Toque de recolher



Tendo como base o poder normativo do juiz da infância e da juventude, muitos juízes estão atualmente editando portarias restringindo os horários de circulação pública de crianças e adolescentes, situação esta denominada vulgarmente de "toque de recolher". O toque de recolher é a proibição, decretada por um governo ou autoridade, de que pessoas permaneçam nas ruas após uma determinada hora. O nome deriva essencialmente da prática europeia de, durante guerras, após determinada hora (geralmente o início da noite), soar uma sirene para que a população deixasse as ruas em caso de bombardeio. Atualmente, o toque pode ou não ser literal, às vezes bastando que carros de patrulha percorram as ruas ordenando que os cidadãos voltem para suas casas e alertando os possíveis infratores. O toque de recolher também é usado para proibir crianças e adolescentes de frequentar casas noturnas e estabelecimentos que vendam tabaco e bebidas alcoólicas.

No Brasil, atualmente, cidades no Estado de São Paulo como Fernandópolis (vide portaria no item anexos), , Itapura e, mais recentemente, Ilha Solteira aderiram à ideia. Em regra, as portarias dos juízes menoristas estipulam as seguintes regras: (1) os menores de 13 anos desacompanhados dos pais só poderão ficar nas ruas até as 20h30m; (2) os menores entre 13 e 15 anos podem permanecer nas ruas até as 22h00m; e (3) os menores entre 15 e 17 anos estão autorizados a permanecer fora de seus lares até as 23h (Luiz Antonio Miguel Ferreira e Sérgio Fedato Batalha, Toque de recolher ou toque de acolher in www.mp.sp.gov.br).

Questão que recai é sobre a legalidade e constitucionalidade da medida. O CONANDA em sua 175ª Assembleia aprovou parecer contrário à medida. Seus principais argumentos são de que novamente crianças e adolescentes seriam tratados como "objetos de direito" e ainda que há restrição ao direito à convivência familiar. Em igual sentido, Luiz Antonio Miguel Ferreira e Sérgio Fedato Batalha (Toque de Recolher ou Toque de Acolher in www.mp.sp.gov.br), que entendem que a adoção dessa medida fere os princípios da dignidade, do respeito, e do desenvolvimento da pessoa humana.

Respeitados esses posicionamentos, próprios de um estado democrático de direito, não visualizamos como medida ilegal ou inconstitucional a portaria que limita o horário noturno de criança e adolescente. O art. 74 do ECA já dispunha sobre a regulamentação pelo Poder Público da diversão e do espetáculo. Nessa diapasão, toda criança ou adolescente possui direito à diversão e espetáculo adequado à sua faixa etária. Existe, portanto, um poder normativo do magistrado da infância e juventude, adequando o horário da diversão da criança e do adolescente. Relacionado ao mesmo, o direito de ir e vir no período noturno que se relaciona diretamente à diversão pública. Pode-se alegar por exemplo que o adolescente frequente o ensino médio ou mesmo o superior nesse horário noturno. Logicamente, essa atividade deve constituir exceção ao denominado "toque de recolher".

Importante frisar que tal poder do magistrado menorista repousa conforme já salientamos em nosso Infração administrativa no Estatuto da Criança e do Adolescente, p. 24, no poder de polícia consistente na obrigação da Administração Pública de condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado. Conforme salientamos, a edição de portaria encaixa-se nesse poder de polícia de cunho eminentemente administrativo. O mesmo já era conhecido com a edição do então Código Mello Mattos e, como destacamos, o próprio magistrado Mello Mattos sofreu enorme pressão em razão do mesmo tencionar exercer esse poder sobre a diversão menorista. É preciso ressaltar que o exercício efetivo da proteção integral e do superior interesse da criança e do adolescente não se faz apenas pela efetivação dos seus direitos, mas também com a delimitação das suas obrigações. O juiz, ao efetivar o poder normatizador através da portaria, estará também de certa forma, contribuindo à sua educação, limitando o contato pernicioso de crianças e adolescentes com substância entorpecentes, bebidas alcoólicas, cigarro etc. Assim, desde que bem direcionada e admitindo exceções como a de circulação de adolescentes em período de estudo ou acompanhado dos pais ou responsável legal, não vislumbramos obstáculo a instituição de portarias pelos juízes regulamentando o horário noturno de circulação de crianças e adolescentes.

Sobre o assunto, o CNJ (PCAs 200910000036952, 200910000036193 e 200910000036170) havia admitido o toque de recolher, já que o direito de ir e vir do menor não seria absoluto. Todavia, no PCA 200910000023514, j. 9-9-2009, por maioria de votos, suspendeu o toque de recolher em Patos de Minas (MG), sob o fundamento de que a medida não pode ter caráter geral*.
 
VALTER KENJI ISHIDA
Professor e PROMOTOR DE JUSTIÇA EM SÃO PAULO
*"Estatuto da Criança e do Adolescente: Doutrina e Jurisprudência"

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