Revista Veja: E agora Joaquim?

     
O Brasil precisa de exemplos
O legado do ministro Joaquim Barbosa transcende a prisão de um bando de corruptos poderosos. Ele mostrou que é possível fazer a coisa certa sem precisar transigir ou flertar com o que existe de errado
Daniel Pereira
O mineiro Joaquim Barbosa sempre acreditou no esforço pessoal. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, estudou em escola pública, formou-se numa universidade federal e assumiu importantes cargos depois de ser aprovado em concurso. À carreira no Ministério Público, acrescentou uma sólida história acadêmica, com passagens, como estudante e professor, por renomadas instituições de ensino do Brasil e do exterior. Barbosa construiu sua trajetória sem a ajuda de padrinhos influentes e sem pedir favores. Numa sociedade acostumada a atalhos duvidosos e ao jeitinho, preferiu o árduo caminho da meritocracia. Essa biografia chamou a atenção do presidente Lula. Em 2003, ele indicou Barbosa para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo de Lula era nomear pela primeira vez um negro para a mais alta corte do Judiciário e, assim, tirar do papel a agenda de políticas afirmativas do governo. O que Lula não sabia é que a escolha renderia frutos bem maiores. Ele escalara o homem certo, na hora certa, para desferir o mais duro golpe contra a corrupção na história recente do país. Sorte dos brasileiros de bem, azar do PT.
Em 2012 e 2013, durante mais de sessenta sessões plenárias, Barbosa comandou o julgamento do mensalão, como relator do processo e, depois, também como presidente do STF. O resultado criminal é conhecido: o Supremo concluiu que o PT subornou parlamentares para se perpetuar no poder, durante o primeiro mandato de Lula, e condenou a antiga cúpula do partido à prisão. O resultado simbólico também é conhecido: a Justiça finalmente se fez valer para todos, sem distinção, o que foi considerado um divisor de águas na luta contra a impunidade que há séculos privilegia os poderosos no Brasil. Anunciadas as penas e decretadas as prisões, Barbosa se tornou uma espécie de herói nacional, o cavaleiro vingador da capa preta, aplaudido nas ruas e assediado para disputar as eleições (veja a matéria na pág. 58). Mas esse era apenas um dos lados da moeda. A outra face, menos evidente, levou o ministro a anunciar, na quinta-feira, que deixará o Supremo em junho, onze anos antes do prazo fixado para sua aposentadoria compulsória. "Minha missão está cumprida", disse Barbosa.
Em fevereiro, VEJA revelou que o ministro cogitava antecipar a aposentadoria. Essa possibilidade ganhou força depois de o plenário derrubar a condenação por formação de quadrilha imposta aos mensaleiros. Barbosa, que se acostumara a formar a maioria, acabou derrotado na votação. Ele suspeitava que dali para a frente, devido à nova composição do tribunal, tenderia a ser sempre derrotado nos embates criminais mais polêmicos. "Essa é uma tarde triste para o Supremo. Com argumentos pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada", lamentou o ministro. A reação estava diretamente relacionada às dificuldades presentes no caso. Lula e o PT jogaram pesado para adiar o início do julgamento, numa tentativa de facilitar a prescrição de certos crimes. Também procuraram ministros para convencê-los a reduzir as penas da companheirada e suavizar o enredo criminoso. Quando o julgamento finalmente começou, Barbosa teve de comprar uma série de brigas para tirar o tribunal de uma espécie de zona de conforto. Uma zona de conforto que, registre-se, sempre contribuiu para dificultar a condenação de políticos, empresários e banqueiros.
Barbosa bateu de frente com os próprios colegas para garantir e acelerar as votações. Chegou a agredi-los verbalmente, acusá-los de cumplicidade com chicanas e acabou isolado dentro do tribunal. Pagou um custo pessoal que, segundo seus assessores, foi compensado pelo benefício proporcionado à sociedade. O ministro também partiu para um duelo aberto com os maiores criminalistas do país. Recusou-se a recebê-los para conversas informais. Parece irrelevante, mas não é. Não são poucos os magistrados que fazem questão de agradar aos grandes nomes da advocacia nacional, mesmo que por meio de pequenos gestos. De origem humilde. Barbosa teve coragem de romper com esses "rapapés aristocráticos", conforme expressão lapidar cunhada pelo antropólogo Roberto DaMatta. O custo pessoal, novamente, não foi pequeno.
"As grandes marcas dele, infelizmente, são a truculência no trato e a intolerância com os pontos de vista que não convergiam com os dele", afirma Alberto Toron, advogado do petista João Paulo Cunha, o ex-presidente da Câmara encarcerado na Papuda. Barbosa, de fato, nem sempre lida bem com a divergência. Muitas vezes, mostrou-se iracundo e autoritário. Certa vez, mandou um jornalista "chafurdar na lama" porque ele ousou lhe fazer uma pergunta. Para o ministro aposentado do STF Carlos Velloso, Barbosa pecou na forma, mas, no caso do mensalão, acertou em cheio no conteúdo. "As instituições valem por si, mas a grandeza depende das pessoas que fazem funcionar as instituições. Barbosa conduziu com firmeza um julgamento exemplar de um processo tormentoso, com muitos réus, e não eram réus quaisquer", diz Velloso. Se não tivesse coragem de enfrentar tantas trincheiras, talvez o STF estivesse até hoje às voltas com requerimentos, petições, questões de ordem...
Depois do mensalão, Barbosa definiu duas prioridades. Uma delas era participar do julgamento sobre as perdas decorrentes dos planos econômicos. Trata-se de um processo bilionário que opõe correntistas a instituições financeiras. No STF, especulava-se que o ministro, após mandar políticos e empresários para a cadeia, votaria contra os bancos. Com a análise desse caso econômico adiada novamente, Barbosa decidiu antecipar a aposentadoria. A outra prioridade era garantir a eficácia das penas aplicadas aos mensaleiros. Barbosa se insurgiu contra os privilégios concedidos a eles na cadeia. Recentemente, suspendeu a autorização de trabalho externo. Com base num laudo médico, revogou a prisão domiciliar de José Genoino. O ex-ministro José Dirceu nunca recebeu aval para trabalhar fora do presídio. Os advogados dos mensaleiros recorreram dessas decisões ao plenário do STF. Não está certo se o julgamento do recurso ocorrerá antes ou depois da aposentadoria de Barbosa.
Se a saída tiver acontecido, será sorteado um novo relator, e a presidência já estará sob a responsabilidade de Ricardo Lewandowski. Afilhado político da ex-primeira-dama Marisa Letícia, Lewandowski é lhano no trato, tem boas relações com os colegas e os advogados e defendeu a absolvição de Dirceu e Genoino no processo. Especialista nos "rapapés aristocráticos", ele é a antítese de Barbosa. O PT não vê a hora de seu algoz sair de cena. De certa forma, também se cansou da briga. "A postura dele não foi de um estadista do Poder Judiciário. Constatamos uma postura carregada de ódio que não caberia a um juiz", disse o deputado Vicentinho, líder do PT na Câmara, ao comentar a aposentadoria. Essa declaração é legítima e faz parte do jogo democrático. Pena que o PT não pare por aí. Militantes do partido na internet, como VEJA mostrou, chegaram a ameaçar Barbosa de morte. "Contra Joaquim Barbosa toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de um monstro e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa deve ser morto", escreveu um deles.
Extenuado, o ministro quer se afastar da artilharia petista e, mais importante, virar a página do mensalão. Para ele, o assunto está encerrado, pacificado. Não é à toa. Sob sua batuta, o Supremo deu aos brasileiros uma lição de moralidade e intransigência com as roubalheiras. Uma lição que até desafetos, como o ministro Marco Aurélio, fizeram questão de ressaltar: "O Supremo, como colegiado, acabou por reafirmar que a lei é lei para todos indistintamente e que não se agradece a esse ou aquele ato a partir da ocupação da cadeira no Supremo". Barbosa não agradeceu a Lula, o que permitiu ao país dar um passo importante em sua escalada civilizatória. Eis aí um grande legado.
O Brasil precisa de exemplos
O legado do ministro Joaquim Barbosa transcende a prisão de um bando de corruptos poderosos. Ele mostrou que é possível fazer a coisa certa sem precisar transigir ou flertar com o que existe de errado
Daniel Pereira
O mineiro Joaquim Barbosa sempre acreditou no esforço pessoal. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, estudou em escola pública, formou-se numa universidade federal e assumiu importantes cargos depois de ser aprovado em concurso. À carreira no Ministério Público, acrescentou uma sólida história acadêmica, com passagens, como estudante e professor, por renomadas instituições de ensino do Brasil e do exterior. Barbosa construiu sua trajetória sem a ajuda de padrinhos influentes e sem pedir favores. Numa sociedade acostumada a atalhos duvidosos e ao jeitinho, preferiu o árduo caminho da meritocracia. Essa biografia chamou a atenção do presidente Lula. Em 2003, ele indicou Barbosa para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo de Lula era nomear pela primeira vez um negro para a mais alta corte do Judiciário e, assim, tirar do papel a agenda de políticas afirmativas do governo. O que Lula não sabia é que a escolha renderia frutos bem maiores. Ele escalara o homem certo, na hora certa, para desferir o mais duro golpe contra a corrupção na história recente do país. Sorte dos brasileiros de bem, azar do PT.
Em 2012 e 2013, durante mais de sessenta sessões plenárias, Barbosa comandou o julgamento do mensalão, como relator do processo e, depois, também como presidente do STF. O resultado criminal é conhecido: o Supremo concluiu que o PT subornou parlamentares para se perpetuar no poder, durante o primeiro mandato de Lula, e condenou a antiga cúpula do partido à prisão. O resultado simbólico também é conhecido: a Justiça finalmente se fez valer para todos, sem distinção, o que foi considerado um divisor de águas na luta contra a impunidade que há séculos privilegia os poderosos no Brasil. Anunciadas as penas e decretadas as prisões, Barbosa se tornou uma espécie de herói nacional, o cavaleiro vingador da capa preta, aplaudido nas ruas e assediado para disputar as eleições (veja a matéria na pág. 58). Mas esse era apenas um dos lados da moeda. A outra face, menos evidente, levou o ministro a anunciar, na quinta-feira, que deixará o Supremo em junho, onze anos antes do prazo fixado para sua aposentadoria compulsória. "Minha missão está cumprida", disse Barbosa.
Em fevereiro, VEJA revelou que o ministro cogitava antecipar a aposentadoria. Essa possibilidade ganhou força depois de o plenário derrubar a condenação por formação de quadrilha imposta aos mensaleiros. Barbosa, que se acostumara a formar a maioria, acabou derrotado na votação. Ele suspeitava que dali para a frente, devido à nova composição do tribunal, tenderia a ser sempre derrotado nos embates criminais mais polêmicos. "Essa é uma tarde triste para o Supremo. Com argumentos pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada", lamentou o ministro. A reação estava diretamente relacionada às dificuldades presentes no caso. Lula e o PT jogaram pesado para adiar o início do julgamento, numa tentativa de facilitar a prescrição de certos crimes. Também procuraram ministros para convencê-los a reduzir as penas da companheirada e suavizar o enredo criminoso. Quando o julgamento finalmente começou, Barbosa teve de comprar uma série de brigas para tirar o tribunal de uma espécie de zona de conforto. Uma zona de conforto que, registre-se, sempre contribuiu para dificultar a condenação de políticos, empresários e banqueiros.
Barbosa bateu de frente com os próprios colegas para garantir e acelerar as votações. Chegou a agredi-los verbalmente, acusá-los de cumplicidade com chicanas e acabou isolado dentro do tribunal. Pagou um custo pessoal que, segundo seus assessores, foi compensado pelo benefício proporcionado à sociedade. O ministro também partiu para um duelo aberto com os maiores criminalistas do país. Recusou-se a recebê-los para conversas informais. Parece irrelevante, mas não é. Não são poucos os magistrados que fazem questão de agradar aos grandes nomes da advocacia nacional, mesmo que por meio de pequenos gestos. De origem humilde. Barbosa teve coragem de romper com esses "rapapés aristocráticos", conforme expressão lapidar cunhada pelo antropólogo Roberto DaMatta. O custo pessoal, novamente, não foi pequeno.
"As grandes marcas dele, infelizmente, são a truculência no trato e a intolerância com os pontos de vista que não convergiam com os dele", afirma Alberto Toron, advogado do petista João Paulo Cunha, o ex-presidente da Câmara encarcerado na Papuda. Barbosa, de fato, nem sempre lida bem com a divergência. Muitas vezes, mostrou-se iracundo e autoritário. Certa vez, mandou um jornalista "chafurdar na lama" porque ele ousou lhe fazer uma pergunta. Para o ministro aposentado do STF Carlos Velloso, Barbosa pecou na forma, mas, no caso do mensalão, acertou em cheio no conteúdo. "As instituições valem por si, mas a grandeza depende das pessoas que fazem funcionar as instituições. Barbosa conduziu com firmeza um julgamento exemplar de um processo tormentoso, com muitos réus, e não eram réus quaisquer", diz Velloso. Se não tivesse coragem de enfrentar tantas trincheiras, talvez o STF estivesse até hoje às voltas com requerimentos, petições, questões de ordem...
Depois do mensalão, Barbosa definiu duas prioridades. Uma delas era participar do julgamento sobre as perdas decorrentes dos planos econômicos. Trata-se de um processo bilionário que opõe correntistas a instituições financeiras. No STF, especulava-se que o ministro, após mandar políticos e empresários para a cadeia, votaria contra os bancos. Com a análise desse caso econômico adiada novamente, Barbosa decidiu antecipar a aposentadoria. A outra prioridade era garantir a eficácia das penas aplicadas aos mensaleiros. Barbosa se insurgiu contra os privilégios concedidos a eles na cadeia. Recentemente, suspendeu a autorização de trabalho externo. Com base num laudo médico, revogou a prisão domiciliar de José Genoino. O ex-ministro José Dirceu nunca recebeu aval para trabalhar fora do presídio. Os advogados dos mensaleiros recorreram dessas decisões ao plenário do STF. Não está certo se o julgamento do recurso ocorrerá antes ou depois da aposentadoria de Barbosa.
Se a saída tiver acontecido, será sorteado um novo relator, e a presidência já estará sob a responsabilidade de Ricardo Lewandowski. Afilhado político da ex-primeira-dama Marisa Letícia, Lewandowski é lhano no trato, tem boas relações com os colegas e os advogados e defendeu a absolvição de Dirceu e Genoino no processo. Especialista nos "rapapés aristocráticos", ele é a antítese de Barbosa. O PT não vê a hora de seu algoz sair de cena. De certa forma, também se cansou da briga. "A postura dele não foi de um estadista do Poder Judiciário. Constatamos uma postura carregada de ódio que não caberia a um juiz", disse o deputado Vicentinho, líder do PT na Câmara, ao comentar a aposentadoria. Essa declaração é legítima e faz parte do jogo democrático. Pena que o PT não pare por aí. Militantes do partido na internet, como VEJA mostrou, chegaram a ameaçar Barbosa de morte. "Contra Joaquim Barbosa toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de um monstro e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa deve ser morto", escreveu um deles.
Extenuado, o ministro quer se afastar da artilharia petista e, mais importante, virar a página do mensalão. Para ele, o assunto está encerrado, pacificado. Não é à toa. Sob sua batuta, o Supremo deu aos brasileiros uma lição de moralidade e intransigência com as roubalheiras. Uma lição que até desafetos, como o ministro Marco Aurélio, fizeram questão de ressaltar: "O Supremo, como colegiado, acabou por reafirmar que a lei é lei para todos indistintamente e que não se agradece a esse ou aquele ato a partir da ocupação da cadeira no Supremo". Barbosa não agradeceu a Lula, o que permitiu ao país dar um passo importante em sua escalada civilizatória. Eis aí um grande legado.
Não dá mais tempo
O ministro Joaquim Barbosa nunca descartou a hipótese de disputar eleições no futuro, apesar de sua total falta de apreço pela política e pelos políticos
Hugo Marques
E inegável o potencial eleitoral do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa. Em novembro do ano passado, uma pesquisa do Instituto Datafolha mostrou o ministro em segundo lugar na corrida presidencial, com 15% das intenções de voto, à frente do senador Aécio Neves (PSDB) e do então governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB). Barbosa aparecia como peça-chave na estratégia destinada a evitar a reeleição da presidente Dilma Rousseff no primeiro turno. Ele gozava de uma situação privilegiada apesar de jamais ter disputado uma eleição e jamais ter se anunciado como candidato. O ministro era aclamado nas ruas por um feito que deveria ser considerado corriqueiro, e não excepcional: ele cumpria seu trabalho de forma correta e, sobretudo no caso do mensalão, mostrando aos brasileiros que a lei valia para todos, de pés-rapados a ladrões de colarinho-branco. Dias depois de determinar a prisão de petistas estrelados, Barbosa sofria pressão de políticos e setores da sociedade, principalmente nas redes sociais, para que disputasse a eleição. Foi em vão. Como não se filiou a um partido dentro do prazo definido por lei, ele não concorrerá em 2014. Nada que lhe reduza o potencial eleitoral.
Os principais rivais do PT desejam uma declaração pública de apoio do ministro. Querem-no em seus palanques. Pelo menos no caso do PSDB, esse é um sonho antigo. Uma importante fileira de tucanos nutriu o sonho de ver Barbosa como vice na chapa de Aécio. Os dois se conhecem pessoalmente. O plano agora é tê-lo como cabo eleitoral na TV e em eventos públicos. Um aceno nesse sentido foi feito por Aécio tão logo Barbosa anunciou sua aposentadoria. Disse o senador: "Ele é um homem que o Brasil aprendeu a respeitar. Pode-se gostar ou não dele, mas é íntegro, honrado e fez muito bem à Justiça brasileira". No início do ano, o PSB também enviou emissários para sondar os humores do ministro, como a ex-corregedora nacional de Justiça Eliana Calmon. A tendência é que o PSB retome a carga, valendo-se do fato de Barbosa compartilhar de posições externadas pela ex-ministra Marina Silva, que será vice na chapa de Campos. Marina e Barbosa são críticos dos partidos brasileiros e da chamada velha política. "Precisar entrar num partido para concorrer é um absurdo, uma camisa de força. Sou favorável à candidatura avulsa", costuma repetir Barbosa.
Na quinta-feira, quando informou aos presidentes dos outros poderes de sua aposentadoria, Barbosa rechaçou a possibilidade de participar do processo eleitoral neste ano. À presidente Dilma, contou que pretende passar uma temporada no exterior durante as eleições. Ao presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB), foi ainda mais taxativo. "De jeito nenhum", respondeu ao ser indagado sobre sua participação na campanha eleitoral deste ano. "Vou parar um pouco. Quero ver a Copa do Mundo." Eleição, portanto, só a partir de 2016. A possibilidade de disputar um cargo no futuro já foi admitida por Barbosa. Mas ele sempre fez questão de ressaltar que não faria nada de forma açodada. "Conheço o país. Não sou um homem de aventuras" é um de seus mantras prediletos. Um dos problemas a ser enfrentados por ele é escolher a qual legenda aderir. Grosso modo, Barbosa divide os partidos em dois grupos. Num deles, estão as siglas que se venderiam e viveriam para fazer negócio. É o varejão. No outro, despontam as grandes agremiações, controladas por caciques que, como o ministro explicou a um amigo, "não vão querer abrir as portas para mim". Motivo? "O Brasil é governado por pessoas provincianas em todos os quadrantes. O Congresso está cheio de gente provinciana. Você não vai encontrar quase ninguém lá capaz de falar sobre assuntos relevantes com um chefe de Estado. O sistema está caminhando numa direção em que só os medíocres têm espaço".
Como VEJA revelou em fevereiro, Barbosa diz ter certa afinidade com o PT de outrora, dos tempos de oposição, aquele que defendia a redução da desigualdade, entre outras bandeiras sociais, e se apresentava intransigente na defesa de valores e modos republicanos. "Não esse PT de hoje tomado por bandidos, pela corrupção." Enquanto a carreira política e a disputa eleitoral não passam de hipóteses, Barbosa se dedicará à advocacia. Ele também estuda convites para voltar a dar aulas no ensino superior. Outro plano é fazer palestras, exatamente como o ex-presidente da República que o indicou ao STF e hoje o considera um traidor da nação petista. "Vou fazer o que o Lula está fazendo", disse ele a Alves, sem conter a risada. No campo pessoal, uma das prioridades é se tratar de um problema crônico nas costas. Há anos, o ministro sofre com fortes dores decorrentes de uma inflamação na base da coluna. O martírio chegou ao ápice durante as mais de sessenta sessões de julgamento do mensalão. Lula e o PT bem que tentaram vergar as instituições, subjugando-as em nome do projeto de poder do partido. Foram impedidos por um Barbosa reto e vertical.
Juiz não é tribunal
O legado definitivo de Joaquim Barbosa no STF vai além das acusações de que contribuiu para judicializar a política (para uns) e politizar a Justiça (para outros)
André Petry
Assim que foi anunciado como ministro do Supremo Tribunal Federal, em maio de 2003, Joaquim Barbosa chamou atenção pela cor da pele. Era o primeiro ministro "reconhecidamente negro"" da corte, considerando que dois mulatos já haviam passado pelo tribunal. Ninguém discutiu seu perfil jurídico, muito menos suas inclinações políticas ou ideológicas – até que, em setembro de 2007, Barbosa apresentou 430 páginas de denúncia contra os envolvidos no escândalo do mensalão. Daí em diante, ao ocupar o centro de um julgamento de formidáveis implicações políticas, Barbosa passou a encarnar talvez o período mais controvertido da história do Supremo. Uns o acusavam de politizar a Justiça, por decidir com dois pesos e duas medidas. Outros o acusavam de judicializar a política, ao confrontar decisões do Congresso e polemizar com seus líderes.
Nesse ambiente conflagrado por paixões políticas e jurídicas em torno do mensalão, é quase inevitável perder o foco da questão principal, a saber: Barbosa foi um juiz justo? Barbosa comandou um julgamento justo? As respostas a essas perguntas vão definir o modelo de Justiça que o Brasil quer construir para, quem sabe um dia, eliminar a chaga da impunidade. O jurista Celso Bandeira de Mello qualificou Barbosa como "um homem mau". Seu ex-colega de Supremo Eros Grau classificou-o como um "orgulho do tribunal", por sua "serenidade e prudência". Ives Gandra Martins, tributarista de renome, disse que Barbosa é um "homem duro". Mas nenhum outro ministro tem fã-clube, página de admiradores no Facebook, máscara de Carnaval e campanha para ser candidato a presidente da República – assim como a renúncia de nenhum outro membro do Supremo foi literalmente festejada por advogados e juízes Brasil afora, que por ele nutrem um desabrido ódio corporativo.
Para decifrar o legado de Barbosa, talvez seja necessário fazer uma distinção entre o magistrado e o Supremo. Pelo seu papel preeminente nos últimos anos em função da relatoria do mensalão, Barbosa parece corporificar a corte, mas poucas coisas são mais desiguais do que o juiz e o tribunal. No julgamento do mensalão, Barbosa demonstrou ser um magistrado implacável, notoriamente movido pelo sentimento de fazer o que lhe parece justo, ainda que, para tanto, seja necessário recorrer à criatividade para desviar dos obstáculos. O tribunal é diferente. Por sua história, carrega uma tradição formalista, um respeito quase cartorial à superioridade da forma sobre o conteúdo, e assim tropeça com frequência no que o público leigo interpreta como – pura e simplesmente –injustiça.
Examinado à luz da história, o julgamento do mensalão foi uma exceção para o tribunal, mas não para Barbosa. Antes, fiel ao seu sentimento de justiça, o ministro recorreu a instrumentos e interpretações semelhantes para fechar o cerco contra Paulo Maluf – que continua livre, milionário e com mandato. Mas o tribunal discordou. Tentou fechar o cerco contra o deputado Ronaldo Cunha Lima, acusado de tentativa de homicídio, e contra o ex-governador mineiro Eduardo Azeredo, réu no caso conhecido como "mensalão tucano", mas foi sempre voto vencido. No mensalão, suas teses finalmente triunfaram. Das 112 votações nas sessões da denúncia dos mensaleiros, Barbosa ganhou todas, 96 por unanimidade. Dos 37 réus, ele votou pela condenação de 32. O tribunal condenou 25. Chamou o julgamento de "marco histórico" e falou do seu desejo de que seja "um ponto de partida para uma virada institucional".
Será? O senador Fernando Collor está livre das acusações que levaram à cassação de seu mandato presidencial em 1992. No Supremo, Collor beneficiou-se da absolvição em alguns casos e da prescrição em outros. Luiz Estevão, o ex-senador que ganhou notoriedade pela amizade com Collor e seu envolvimento no propinoduto do Tribunal Regional do Trabalho em São Paulo, continua tão livre e rico quanto Maluf. José Roberto Arruda, um dos raros políticos do planeta que foram filmados embolsando propina, continua impune. Ficou uns dias atrás das grades, mas agora planeja candidatar-se a governador do Distrito Federal, cargo ao qual foi obrigado a renunciar quando flagrado com a boca na botija. Não são sinais de uma "virada institucional".
A comparação entre um julgamento e outro é sempre incompleta. Cada caso tem suas peculiaridades e circunstâncias, mas a sociedade tem uma intuição bastante clara do que é justiça e do que é injustiça. É complexo, no entanto, definir no que se constitui a essência de um julgamento justo. Na despedida de Barbosa, seu colega Marco Aurélio de Mello disse: "Vossa Excelência veio a ser relator de uma ação penal importantíssima na qual o Supremo, como colegiado. acabou por reafirmar que a lei é lei para todos, indistintamente". Faz parte do protocolo dizer coisas agradáveis nas cerimônias de adeus, mas o Brasil, infelizmente, ainda não chegou ao ponto em que a "lei é lei para todos, indistintamente". Espera-se que esteja a caminho disso. A passagem de Barbosa pelo STF aumentou a torcida nacional para que o Supremo, e a Justiça brasileira em geral, não volte a ser visto como um instrumento para a impunidade dos poderosos. E que Joaquim Barbosa não seja visto como a última esperança – afinal, vã.
Revista Veja 01/06/2014 - Disponível na web (EBC)

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