As Circunstâncias judiciais do art.59 do Código Penal
A
aplicação da pena é a parte da sentença penal condenatória mais corrigida pelos
Tribunais. Esse fato se deve, basicamente, à inobservância – ou ao
desconhecimento – de critérios limitadores e garantistas, previstos,
principalmente, pela Constituição Federal.
A
aplicação da pena é, certamente, a parte da sentença penal condenatória mais
corrigida pelos Tribunais, por ocasião dos julgamentos recursais. Esse fato se
deve, basicamente, à inobservância – ou ao desconhecimento – de critérios
limitadores e garantistas, previstos, principalmente, pela Constituição
Federal. São inúmeros os casos em que o decreto condenatório apresenta erros na
dosimetria da pena. O maior prejudicado é sempre o condenado: os erros
dosimétricos na decisão penal significam, em regra, acréscimo em anos de
cumprimento de pena. Esse plus não só aumenta a justa quantidade de pena
que deveria ser aplicada, mas, ainda, pode vir a impossibilitar: a fixação de
regime prisional menos gravoso; a substituição, prevista no artigo 44, do
Código Penal; a concessão de suspensão condicional da pena; ou, até mesmo, a
extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva estatal. Na
execução da pena exageradamente aplicada, maior também será seu tempo de
cumprimento efetivo, para a obtenção de progressão de regime, de livramento
condicional, de comutação.
A maior
concentração de erros, neste tocante, ocorre na primeira etapa do
sistema dosimétrico, onde o Juiz prolator da condenação deve analisar, criteriosamente,
cada uma das oito circunstâncias judiciais constantes do artigo 59 do Código
Penal, individualizando-a para cada réu e para cada infração penal praticada.
Visando a
indicar um critério justo de análise dessas circunstâncias judiciais, que
possibilite ao acadêmico e ao profissional do Direito conhecer os limites dessa
valoração, de forma prática e objetiva, tendo como norte os princípios
constitucionais, apresenta-se o presente escrito, sem, contudo, objetivar-se o
exaurimento do assunto.
É bem
verdade que a lei traz, expressamente, os passos para calcular a reprimenda.
Contudo, fica a critério do magistrado estabelecer os critérios de valoração
dessas diretrizes. Essa subjetividade que possui o julgador, no momento do
cálculo da pena, poderia até converter-se em arbitrariedade, se não houvesse
parâmetros de interpretação e aplicação da lei. Felizmente, a Constituição
Federal não se omitiu de trazê-los.
Textos relacionados
- Latrocínio com morte dupla: concurso formal impróprio
- Garantismo “positivo” é garantismo?
- Direito Penal Econômico: questionamentos a uma nova dogmática penal
- Injúria em reality show: inexigibilidade de conduta diversa. Reflexões a partir de caso ocorrido no Big Brother Brasil 12
- STF, aborto de fetos anencéfalos, ADPF 54 e legislador positivo
Do Sistema Trifásico
A aplicação da pena pelo Juiz ocorre, conforme determina o
art. 68, do Código Penal (a partir de sua reforma, em 1984), em três etapas.
Na primeira delas, avaliam-se as circunstâncias chamadas
"judiciais", constantes do caput, do artigo 59, do Código
Penal: culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do
sentenciado; motivos, circunstâncias e conseqüências da infração penal; e,
ainda, comportamento da vítima. Fixa-se, assim, com alicerce nessa apreciação,
a pena-base, que servirá de ponto de partida para a próxima fase.
Por ocasião da segunda etapa, o Juiz aumenta ou diminui a
pena-base, conforme exista, in casu, alguma(s) circunstância(s)
agravante(s), prevista(s) nos artigos 61 e 62 do Código Penal, ou atenuante(s),
prenunciada(s) nos artigos 65 e 66 do mesmo codex, chegando, dessa
forma, a uma pena provisória.
Finalmente, na terceira fase dosimétrica, partindo o
Magistrado dessa pena provisória, aumenta-a ou a diminui, de acordo com a
constatação da ocorrência de causa(s) especial(is) de aumento ou de diminuição
da pena, previstas em diversos dispositivos da Parte Geral do Código Penal, e,
ainda, nos próprios tipos penais. Determina, assim, a pena definitiva a
ser cumprida pelo condenado.
Levando-se em conta que, no caso concreto, pode não haver
circunstâncias agravantes ou atenuantes, nem causas especiais de aumento ou de
diminuição; mas, que, em todas as sentenças penais condenatórias, sem
exceções, haverá que se analisar cada uma das oito circunstâncias judiciais
(sob pena de nulidade da decisão), urge estabelecer quais os melhores critérios
para examiná-las e, por conseguinte, obter-se a pena-base da forma mais justa
possível.
Da Fixação da Pena-Base
Constam expressamente do artigo 59 do CP (ao qual remete o
artigo 68, caput, do mesmo diploma legal) as diretrizes para a fixação
da chamada pena-base: "O Juiz, atendendo à culpabilidade, aos
antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima,
estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção
do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas; II – a
quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;…"
Assim, verificando o julgador que as circunstâncias judiciais
do artigo 59 do CP são todas favoráveis ao agente, deve fixar a pena-base no
mínimo legal, já que o próprio dispositivo em comento, em seu inciso II,
enfatiza os limites da pena-base, dentro dos parâmetros legais. Dessa forma, à
cada circunstância judicial valorada desfavoravelmente ao condenado, o
magistrado acrescenta um quantum ao mínimo cominado no tipo penal, sem
extrapolar, jamais, a pena máxima prevista para a infração.
A questão que se pretende solucionar é: quais critérios pode
(e quais não pode) o Juiz utilizar para bem valorar uma circunstância judicial
como desfavorável ou favorável ao agente, no caso concreto? É o que se busca,
no presente trabalho, sem divagações históricas, responder nas próximas
publicações, com fundamento em doutrina e jurisprudência; e, sempre, sob a
ótica constitucional.
Da culpabilidade do
sentenciado
A culpabilidade aparece no Direito Penal brasileiro como
limitador à responsabilização criminal. Somente será censurado o indivíduo que
praticar um injusto penal, possuindo a capacidade – ainda que genérica – de
querer e de entender e a possibilidade de, nas circunstâncias do momento, agir
de outra forma (lícita). Mais do que isso: a pena a ele aplicada ficará
limitada ao grau de sua culpabilidade.
Assim, em um primeiro momento, depara-se o magistrado
criminal com a verificação da ocorrência dos elementos da culpabilidade, para
concluir se houve ou não prática delitiva. Após, quando da dosimetria da pena,
necessita, mais uma vez, recorrer ao exame da culpabilidade, agora, como
circunstância judicial. Dessa vez, a análise da culpabilidade exige maior
esforço do julgador: não se trata mais de um estudo de constatação (haja
vista já ter restado evidente, in casu, a sua presença) e, sim, de um
exame de valoração, de graduação.
Portanto, deve o juiz, nessa oportunidade, dimensionar
a culpabilidade pelo grau de intensidade da reprovação penal, expondo
sempre os fundamentos que lhe formaram o convencimento.1
A graduação da reprovação da conduta sancionada pode auferir-se
a partir de dois dos elementos da culpabilidade: o potencial conhecimento da
ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Exclui-se a análise
do grau de imputabilidade, pois, quando reduzido, implicará a incidência de
causa de diminuição da pena (art. 26, parágrafo único, do Código Penal), cujo
cômputo dar-se-á na terceira etapa da dosimetria.
Já, quanto à análise da consciência ou do potencial
conhecimento da ilicitude, impende destacar a ressalva de que, se o agente
estiver prejudicado por um erro de proibição evitável (artigo 21, in fine,
do Código Penal), este será sopesado somente na terceira etapa dosimétrica por
constituir causa de diminuição.2 Nos demais casos, pode-se avaliar o
grau de maior ou menor consciência ou potencial conhecimento do ilícito pelo
agente, no caso concreto.
Ademais, o magistrado, na valoração da culpabilidade, deve
dispensar especial atenção à verificação do maior ou menor grau de
exigibilidade de outra conduta, considerando, neste tocante, as
características pessoais do agente dentro do exato contexto de circunstâncias
fáticas em que o crime ocorreu. Este é, sem dúvida, o melhor
critério de exame da intensidade de reprovação do crime3. Quanto
mais exigível a conduta diversa, maior é a reprovação do agir do sentenciado.
Para alguns, a apreciação da "intensidade do
dolo" ou do "grau de culpa", expressões utilizadas na
redação antiga da lei, seria plenamente cabível por constituírem ambos
indicativos da censurabilidade da conduta sancionada4.
Existe, ainda, o entendimento de que a culpabilidade
não é critério para medir o juízo de reprovação e, sim, é o próprio juízo de
reprovação. Defensor dessa corrente, o Professor Juarez Cirino dos Santos5,
percebe que: "a inclusão da culpabilidade como elemento de orientação
na formulação do juízo de reprovação (medido pela pena) representa uma
impropriedade metodológica: constitui a conclusão do processo analítico fundado
na metodologia jurídica do crime"
O magistrado paranaense Gilberto Ferreira6 reforça
essa opinião, afirmando que o legislador deveria ter estabelecido que, para se
determinar o grau de culpabilidade, examinar-se-iam os antecedentes, conduta social
e personalidade do agente; os motivos, circunstâncias e conseqüências do crime
e o comportamento da vítima, deixando que tais elementos indicassem o quanto
mais ou menos culpável seria o agente.
Cezar Bitencourt7 alerta para o grave e bastante
freqüente desacerto dos magistrados ao analisarem a circunstância judicial da
culpabilidade afirmando que: "o agente agiu com culpabilidade, pois
tinha a consciência da ilicitude do que fazia". Ora, se o agente não
tivesse agido com culpabilidade não teria sido condenado; ou, da mesma forma,
se não tivesse a consciência da ilicitude do que fazia. É errado,
portanto, na dosimetria da pena, repetir-se o juízo de constatação da
culpabilidade e de seus elementos. De igual forma, não se pode fundamentar
o exame da culpabilidade na alegação de que o acusado tenha agido de forma
livre e consciente, pois: "o fato de o acusado ter agido livre e
conscientemente não pode fundamentar a exasperação da pena-base, pois, se a
ação não fosse consciente e deliberada, inexistiria dolo".8
Cumpre relevar, ainda, que o exame da graduação da
culpabilidade é trabalho complexo, sendo, por conseguinte, inadmissíveis "as
afirmações monossilábicas que encontramos em algumas sentenças, do tipo ‘a
culpabilidade é mínima’, ou ‘grave’, ‘intensa’, etc".9
Cabe registrar, também, a proibição ao Juiz de que avalie a
culpabilidade como desfavorável com o(s) mesmo(s) fundamento(s) que alicerçará
a análise negativa de outra(s) das sete circunstâncias seguintes. Tal
incidência caracterizaria, sem dúvida, violação ao princípio "non bis
in idem", que proíbe a consideração de uma mesma situação, por mais de
uma vez, para o agravamento da pena que está sendo aplicada.
De igual modo, é vedado ao juiz que considere, na valoração
da culpabilidade (e das demais circunstâncias judiciais) fatores que constituam
ou qualifiquem o crime, ou, ainda, que caracterizem circunstância agravante ou
causa especial de aumento de pena (a serem sopesadas nas etapas subseqüentes).
Assim sendo, não pode ser considerado elevado o grau de
culpabilidade, por exemplo, no delito de estelionato, pelo fato de "o
agente ter agido de má-fé, sem importar-se com seu semelhante que sofreu o
prejuízo", porque a má-fé do agente e o prejuízo (e a indiferença para com
a vítima, por conseguinte) são circunstâncias que já constituem o próprio
delito e que, portanto, já estão devidamente "sancionadas" pela pena
abstrata, ainda que no mínimo legal.
Às vezes, a circunstância que se quer analisar não está
expressa de forma "escancarada" no tipo penal. É preciso,
neste tocante, fazer uma interpretação mais apurada do tipo e de suas
freqüentes circunstâncias, para não incorrer em erro. Dessa forma, em se
tratando da prática de crime de omissão de recolhimento de contribuições
previdenciárias: "a condição de empresário revelada pelo acusado não
pode acentuar a sua culpabilidade, exigindo-lhe maior consciência da ilicitude
de sua conduta e fundamentando a exasperação da pena-base, tendo em vista que,
no crime em exame, a responsabilidade normalmente recai sobre empresários. Nem
mesmo o fato de centralizar as decisões da empresa pode ser considerada
desfavorável, pois consiste em pressuposto para o reconhecimento da própria
autoria delitiva".10
No mesmo entendimento equivocado encontram-se os que
fundamentam a culpabilidade como "elevada" ao agente, em razão da
"reiteração criminosa", quando, a seguir, aumentam a pena pela
continuidade delitiva (art. 71, do CP). Esquecem-se de que "os atos
delituosos de prolongarem no tempo, configurando a continuidade delitiva, não
podem ser considerados também nas circunstâncias do art. 59, sob pena de
incidir-se em ‘bis in idem’".11 Nesses casos, só se deve
considerar o aumento do art. 71 do CP, pois "a continuação dimensiona a
reiteração"12.
Dos antecedentes do
condenado
No que tange à circunstância judicial que perquire a vita
anteacta do sentenciado, cumpre verificar, preliminarmente, que a
doutrina e a jurisprudência divergem quanto às situações que podem ser
consideradas como "maus antecedentes". Contudo, é preciso lembrar que
"a pena há de ter critérios e limites para a sua aplicação, em respeito
mesmo à dignidade da pessoa humana" 13 e que, portanto, a
valoração das circunstâncias judiciais não deve fugir à regra de que as leis,
sobretudo as penais, devem ser interpretadas sob o prisma das garantias
individuais asseguradas pela Carta Magna.
Inicialmente, há que se considerar que somente fatos
anteriores14 à prática do delito que se está punindo podem
caracterizar antecedentes, pois os demais configurariam impuníveis "conseqüentes".
Superada esta questão, impende registrar que, por "antecedentes",
devem entender-se apenas os judiciais. Caso exista,
nos autos, notícia de antecedentes "desabonadores" que digam respeito
à vida privada do condenado, poderá ela, quando pertinente, ser sopesada na
análise da "conduta social15", ou, talvez, da "personalidade"
do apenado; porém, nunca, dos antecedentes. Apesar disso, há os que
confundem as circunstâncias, conforme alertam Salo de Carvalho16 e
Fragoso17.
Não se pode sopesar, por
ocasião da análise dos antecedentes, a condição de reincidente do
sentenciado. Como é cediço, a reincidência deve ser sopesada na segunda
etapa dosimétrica, por constituir circunstância agravante (art. 61, I, do
CP). O Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Paraná
alerta para esta distinção, verbis:"A reincidência não deve ser
considerada na análise dos antecedentes do condenado na fase de
individualização da pena, mas tão-somente como agravante." 18
Será reincidente aquele que, na data em que praticou o
crime que se está julgando, já possuía condenação definitiva (transitada em
julgado) por outro crime anterior (art.63, do CP). Todos aqueles em situação
diversa desta podem ser considerados não reincidentes. Também serão não
reincidentes aqueles que possuírem, na data do delito, condenação
definitiva por crime militar próprio ou politico (art. 64, II, do CP) e aqueles
em que decorreu lapso de tempo superior a cinco anos entre a data do
cumprimento ou extinção da pena e a infração que se está julgando (em razão do
período qüinqüenal depurador da reincidência, art. 64, I, do CP).
Já sabendo que se excluem do conceito: os "antecedentes"
não judiciais, os fatos subseqüentes ao delito e a condição de
reincidente, cabe, agora, descobrir a quem se pode chamar
"possuidor de maus antecedentes". Recorre-se, para tanto, ao
processo de eliminação de possibilidades ensinado por Maria Fernanda Podval19,
acrescentando-se, a ele, ainda, outras hipóteses de exclusão ao conceito.
Com muita propriedade, a autora percebe que, em respeito ao
princípio constitucional da presunção de inocência20, não se
podem considerar como maus antecedentes: a mera instauração de inquérito
policial, nem a existência de ações penais em andamento, nem mesmo
quando há sentença penal condenatória que ainda não transitou em julgado.
Esse entendimento, contudo, não é pacífico nos Tribunais, o
que constitui fato lamentável. Se a própria Carta Magna estabelece que ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal
condenatória, não pode o juiz, aumentar a pena de alguém com base na existência
de uma ação penal que ainda não se concluiu, sob pena de um cidadão cumprir
tempo maior de pena pela simples possibilidade de condenação (que também
representa possibilidade de absolvição), em outro processo. Mais do que
irracional, esse posicionamento é inconstitucional, violador das garantias
individuais do cidadão. É realmente triste constatar que, mesmo o Supremo
Tribunal Federal, guardião da Constituição Federal, tem violado esta garantia
na maioria dos julgamentos que envolvem o tema, restando expresso, em alguns
deles, sem qualquer pudor, o verdadeiro desprezo à Lei Maior, como no caso do
RHC nº 80.071/RS, em que constou do voto do Min. Maurício Corrêa que "pouco
importa se se cumpriu o inciso LVII do artigo 5º da Constituição, ou não, quer
dizer, aguardar-se o trânsito em julgado da decisão para que se levassem em
conta os maus antecedentes"21. A ordem para reformar a
pena, naquela ocasião, só foi concedida, por empate, constando do brilhante
voto do Min. Celso de Mello que:"o ato judicial de fixação da pena não
poderá emprestar relevo jurídico-legal a circunstancias que meramente
evidenciem haver sido, o réu, submetido a procedimento penal-persecutório, sem
que deste haja resultado, com definitivo trânsito em julgado, qualquer
condenação de índole penal (…) Tolerar-se o contrário implicaria admitir grave
e inaceitável lesão ao princípio constitucional que consagra a presunção juris
tantum de não-culpabilidade dos réus ou dos indiciados".
Não podem, ainda, ser consideradas
como maus antecedentes as condenações anteriores por crimes militares
próprios e por crimes políticos, porque a lei as exclui do conceito de
reincidência, e não o fez por acaso. As excluiu ora porque puniam condutas
administrativas, ora porque a motivação do agente o diferenciava do criminoso
comum.
Não caracterizam, ainda,
maus antecedentes os fatos ocorridos antes da maioridade penal do condenado22,
por não poderem, graças à anterior inimputabilidade do agente, constituir
qualquer gravame na culpabilidade. Exacerbar a pena por fatos praticados quando
o agente estava fora do alcance da norma penal contraria a lógica e o bom senso23.
Também não se consideram maus antecedentes as condenações
cuja pena foi cumprida ou extinta há mais de cinco anos da prática
delitiva, decorrendo essa proibição, por lógica24, do prazo
qüinqüenal depurador da reincidência, previsto no artigo 64, inciso I do Código
Penal, garantidor de que o cidadão não será eternamente discriminado. A
jurisprudência, no entanto, diverge: ora está neste sentido25, ora
contra26.
Ainda, excluem-se dos maus antecedentes: as propostas
aceitas de suspensão condicional do processo27 e de transação penal
e, ainda, os acordos civis extintivos da punibilidade, pois todas essas
medidas trazidas pela Lei nº 9099/95 não possuem natureza condenatória nem há,
nelas, qualquer admissão de culpa pelo "beneficiado".
Finalmente, ao contrário do que prega parte da jurisprudência28,
a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva do Estado, em outra
ação penal, não pode gerar antecedentes29, por respeito
também ao princípio da presunção de inocência, já que, tanto quando ocorre a
prescrição pela pena em abstrato, quanto pela pena em concreto, resta prejudicada
a análise do mérito (pelo Juízo sentenciante ou pelo Tribunal a quo, respectivamente).
Pelo processo de eliminação da Professora Podval (ao qual se
acrescentaram mais algumas situações de não caracterização de maus
antecedentes), "deve-se concluir que por maus antecedentes entendem-se
apenas as condenações anteriores por contravenção e as condenações
com trânsito em julgado após a segunda conduta30".
A primeira das hipóteses, deve-se ao fato de que, apesar de
constituírem infrações penais, as contravenções (Decreto-Lei nº 3688/41) quando
implicam condenação definitiva, não geram reincidência porque a lei se refere
expressamente à condenação anterior por crime. Exceção a essa regra, é o
caso do agente que está sendo julgado por prática de contravenção penal e
que já possuía anterior condenação por contravenção: aí será considerado reincidente,
como dispõe o artigo 7º da LCP.
Na segunda das situações, o agente, quando praticou a conduta
que se está punindo, já havia praticado outro crime, contudo, só veio a ser
condenado definitivamente por este após praticar aquele. Tal situação não se
enquadra no conceito de reincidência, mas, por haver trânsito em julgado da
condenação, é justo que se recrudesça a reprimenda ao agente, tendo em vista que,
ao praticar o delito, já havia praticado outro, o que indica maior reprovação à
conduta.
No que diz respeito à prova dos antecedentes, há que
se considerar a certidão cartorária de antecedentes criminais, com explícita
referência à data do trânsito em julgado da eventual condenação31.
Portanto, o magistrado deve, sempre, indicar os elementos constantes dos autos
que caracterizam os maus antecedentes, não podendo, simplesmente, afirmar que o
acusado os possui, sob pena de nulidade.
Da conduta social do sentenciado
A
terceira circunstância do artigo 59, do Código Penal que, antes da reforma de
1984, era abrangida pelos antecedentes, diz respeito ao comportamento do
sentenciado em relação à comunidade em que vive.
Esse
exame traduz verdadeira "culpabilidade pelos fatos da vida" (ao invés
da "culpabilidade pelo fato praticado"), tão criticada pelos
penalistas, mas que tem, por escopo, auxiliar o Juiz na busca da perfeita
graduação da censura penal.
Devem ser
examinados, nessa ocasião, os elementos indicativos da inadaptação ou do bom
relacionamento do agente perante a sociedade em que está integrado (e não na
sociedade que o Magistrado considera saudável ou ideal)32.Vale
dizer: quando o ambiente em que o agente se inserir for, por exemplo, uma
favela, não poderá o Juiz exigir-lhe comportamento típico das classes sociais
mais abastadas.
É preciso
haver uma circunstancialização para que se entenda a forma como o agente
se comporta em seu meio.
Aufere-se
a conduta social do apenado, basicamente, da análise de três fatores que fazem
parte da vida do cidadão comum: família, trabalho e religião33.
Nestes
três campos da vida (familiar, laborativo e religioso), pode-se analisar: o
modo de agir do agente nas suas ocupações, sua cordialidade ou agressividade,
egocentrismo ou prestatividade, rispidez ou finura de trato34, seu
estilo de vida honesto ou reprovável35.
José
Eulálio de Almeida36 leciona que o juiz deve colher da prova
produzida nos autos: "...a vocação do acusado para o trabalho ou para a
ociosidade; a afetividade do mesmo para com os membros que integram a sua
família, ou o desprezo e indiferença que nutre por seus parentes; o prestígio e
a respeitabilidade de que goza perante as pessoas do seu bairro ou da sua
cidade, bem como o índice de rejeição de que desfruta entre os que o conhecem
socialmente; o seu entretenimento predileto (…) ou se prefere a companhia
constante de pessoas de comportamento suspeito e freqüenta, com habitualidade,
locais de concentração de delinqüentes, casas de tolerância, lupanares ou congêneres;
o seu grau de escolaridade, tal como a assiduidade e a abnegação pelo estudo ou
o desinteresse pelo mesmo, assim como o respeito e o relacionamento com
funcionários, professores e diretores do estabelecimento escolar."
Textos relacionados
- Garantismo “positivo” é garantismo?
- Direito Penal Econômico: questionamentos a uma nova dogmática penal
- Injúria em reality show: inexigibilidade de conduta diversa. Reflexões a partir de caso ocorrido no Big Brother Brasil 12
- STF, aborto de fetos anencéfalos, ADPF 54 e legislador positivo
- O sistema acusatório e a iniciativa probatória do juiz (art. 156, inciso I, CPP)
No seu dizer, também pode o julgador considerar o trabalho
social realizado pelo agente em favor de determinado grupo comunitário,
contudo, desde que essa atividade tenha fins sinceramente filantrópicos.
Gilberto Ferreira37 adota, como critério para a
valoração da conduta social, a caminhada de vida percorrida pelo agente. Avalia,
com esmero, como comportava-se o agente na condição de estudante, de pai, de
trabalhador, de componente da vida social: "...um mau aluno, um pai
irresponsável, que deu causa à separação e não paga alimentos aos filhos, ou
que se entrega constantemente à embriaguez ou a uma vida desregrada. Um
empregado que vive encrencando com seus colegas de trabalho. Uma pessoa
insensível que não tem a menor consideração para com o próximo, vivendo à
margem da sociedade."
Deve-se ponderar, todavia, que o uso freqüente de bebida
alcoólica, por si só, não justifica valoração negativa da conduta social do
agente, pois o alcoólatra é um doente que carece de tratamento38.
A breve justificativa do Magistrado de que o apenado tem má
conduta social porque "se revela perigoso" à sociedade também não é
acertada, pois ao agente que se apresenta perigoso, pela probabilidade de
voltar a delinqüir, a legislação estabelece a aplicação de medida de segurança39.
A valoração da conduta social também não se confunde com o
exame dos antecedentes. Pode haver casos em que o sujeito com registro de
antecedentes criminais tenha conduta social elogiável40, assim como
é possível encontrar situações em que o sujeito com um passado judicial
imaculado seja temido na comunidade em que vive.
No enfoque da conduta social, não pode o Magistrado
restringir-se a afirmar que o réu "aparentemente não possui boa conduta
social", sem tomar por base minimamente os elementos probatórios dos
autos41. Não bastam meras conjecturas42, é necessário que
se ponderem as provas, geralmente orais, produzidas nos autos: a palavra das
testemunhas que conviveram com réu (inclusive das abonatórias), eventuais
declarações, atestados, abaixo-assinados, etc43, que demonstrem um
comportamento habitual. A constatação de um fato isolado na vida do
condenado não revela sua conduta social, que é sempre permanente.
Da personalidade do
sentenciado
A personalidade é definida pela doutrina como a índole do
agente, sua maneira de agir e de sentir, seu grau de senso moral44,
ou seja, a totalidade de traços emocionais e comportamentais do indivíduo45,
elemento estável de sua conduta, formado por inúmeros fatores endógenos ou
exógenos46.
A missão do Magistrado na valoração desta circunstância não é
nada simples. Exige, em primeiro lugar, que ele tenha conhecimentos de
psicologia e de psiquiatria. É preciso, ainda, que o processo esteja instruído
com todos os elementos necessários a essa valoração. E, finalmente, que ao
Magistrado tenha sido oportunizado o contato pessoal com o réu.
A realidade, no Brasil, conforme assevera Gilberto Ferreira47,
é a de que o Juiz não tem condições de avaliar cientificamente a personalidade
do criminoso, por quatro principais motivos: "Primeiro, porque ele não
tem um preparo técnico em caráter institucional. As noções sobre psicologia e
psiquiatria as adquire como autodidata. Segundo, porque não dispõe de tempo
para se dedicar a tão profundo estudo. Como se sabe, o juiz brasileiro vive
assoberbado de trabalho. Terceiro, porque como não vige no processo penal a
identidade física, muitas vezes a sentença é dada sem ter o juiz qualquer
contato com o réu. Quarto, porque em razão das deficiências materiais do Poder
Judiciário e da polícia, o processo nunca vem suficientemente instruído de modo
a permitir uma rigorosa análise da personalidade"
Fernando Galvão48 confirma esse entendimento,
manifestando que o exame da personalidade é tarefa que supera as forças do
Magistrado "padrão". Na obrigação legal de valorar tal circunstância,
o Juiz acaba por fazê-lo de forma precária, imprecisa, incompleta, superficial,
limitada, no dizer de Paganella Boschi49, a afirmações como
"personalidade desajustada", "ajustada",
"agressiva", "impulsiva", "boa" ou
"má", que, tecnicamente, nada informam.
Por um lado, conforme consta do Acórdão da lavra do ilustre
Juiz paranaense José Maurício Pinto de Almeida, "o dever de
individualizar a pena fundamentadamente pode ser cumprido de forma concisa,
desde que se apontem elementos de convencimento judicial das conclusões
emitidas pelo julgador. De outro lado, não se pode confundir, na motivação da
aplicação da pena, fundamentação concisa com frases abertas e genéricas que
enfeixam demasiada concisão, a qual acaba por gerar carência de motivação,
ferindo-se assim o inc. IX do art. 93 da Constituição Federal, que contém
princípio de ordem pública." 50
Cumpre destacar que a personalidade do agente é
característica individual. Praticamente impossível, portanto, repetir-se em
terceiros, com igual forma e intensidade. Assim, é temerário considerar a
personalidade de co-réus como idênticas.
Também não pode o Magistrado julgar o agente pelo que seus
ancestrais praticaram nem pelo que pratica o agrupamento ou grupo social do
qual participa51.
Salo de Carvalho52, ao tratar do tema, conclui
pela verdadeira "impossibilidade técnica de o jurista proceder tal averiguação
e, conseqüentemente dela retirar os efeitos legais". Defende, também,
que essa circunstância judicial, por evidente consagração ao "direito
penal de autor", fere o pensamento penalístico atual, citando julgado
nesse sentido53.
Valem, também, aqui, as anotações sobre o especial cuidado
que deve ter o Juiz para não incidir em bis in idem, ou seja, para não
considerar, na análise da personalidade, fatores: que já foram utilizados na
valoração negativa de outra circunstância judicial; ou que constituam ou
qualifiquem o delito; ou, ainda, que caracterizem agravante ou causa especial
de aumento de pena.
Destarte, é proibido, por exemplo, que utilize a
justificativa da "personalidade deturpada em razão da reiteração
criminosa" quando for considerar o aumento de pena relativo ao crime
continuado54, para não incidir em bis in idem.
Geralmente são considerados na valoração da personalidade os
seguintes elementos: laudos psiquiátricos, informações trazidas pelos
depoimentos testemunhais e, ainda, a própria experiência do Magistrado em seu
contato pessoal com o réu.
Não havendo, contudo, nos autos, elementos suficientes para o
exame da personalidade, ou, ainda, tendo o Juiz a consciência de sua inaptidão
para julgá-la, não deve hesitar em declarar que não há como valorar essa
circunstância e em abster-se de qualquer aumento de pena relativo a ela. Melhor
será reconhecer a carência de elementos ou a própria inaptidão profissional do
que acabar agravando a pena do sentenciado por uma valoração equivocada, pobre
de provas ou injusta.
Dos motivos da infração
penal
Não há dúvidas de que, conforme a motivação que levou o
agente a delinqüir, sua conduta poderá ser bem mais ou bem menos reprovável. No
dizer de Bitencourt e de Regis Prado, os motivos "constituem a fonte propulsora
da vontade criminosa"55, sendo esta, para Magalhães Noronha56,
a mais importante de todas as circunstâncias para se auferir a quantidade de
pena.
Não existe conduta humana desprovida de motivos. Se fosse
possível, na prática forense, encontrar um caso de crime sem motivo,
dever-se-ia desconfiar das faculdades mentais do acusado57.
No exame dessa circunstância judicial, o magistrado deve
indagar: qual a natureza e a qualidade dos motivos que levaram o agente a
praticar a infração penal?58.
Não se trata, portanto, de analisar a intensidade de dolo ou
culpa59, mas de descobrir se a qualidade da motivação do agir do
agente merece mais ou menos reprovação.
Assim, o agente que furta para satisfazer a necessidade
alimentar o filho tem motivação menos reprovável (porque nobre) do que aquele
que furta para prejudicar o desafeto (por inveja ou por vingança).
O médico que facilita a morte do paciente, diante de seu
desmedido e incombatível sofrimento, possui motivo menos reprovável do que o
agente que mata o irmão, para que seja o único sucessor do patrimônio do
ascendente.
Nélson Hungria, citado por Gilberto Ferreira60,
indica alguns dos motivos que devem ser sopesados nesta fase dosimétrica: "Motivos
imorais ou anti-sociais e motivos morais ou sociais, conforme sejam, ou não,
contrários às condições ético-jurídicas da vida em sociedade. O amor à família,
o sentimento de honra, a gratidão, a revolta contra a injustiça, as paixões
nobres em geral podem levar ao crime; mas o juiz terá de distinguir entre esses
casos e aqueles outros em que o ‘movens’ é o egoísmo feroz, a cólera má, a
prepotência, a malvadez, a improbidade, a luxúria, a cobiça, a ‘auri sacra
fames’, o espírito de vingança, a empolgadura de vícios."
O motivo da infração, assim como as demais circunstâncias
judiciais, não pode ser valorado negativamente quando integrar a definição
típica, nem quando caracterizar circunstância agravante ou causa especial de
aumento de pena.
De igual modo, quando o motivo do agente é o normal à espécie
delitiva, não pode o Juiz aumentar a reprimenda, tendo em vista que aquele, por
ser inerente ao tipo, já possui a necessária censura, prevista, até mesmo, na
pena mínima abstrata.
Exemplificando: num caso de furto praticado pelo desejo de
obtenção de lucro fácil, o Juiz deve entender pelo não recrudescimento da pena
em razão desta circunstância judicial pois, freqüentemente, este é o motivo dos
crimes de furto (assim como a satisfação da lascívia, nos crimes de estupro; o
enriquecimento, nos crimes fiscais…). Os motivos diversos dos normais à espécie
delitiva, portanto, é que devem ser valorados pelo Magistrado.
Assim, reprise-se, deve o Juiz agir com a máxima cautela
para, no exame dos motivos, não incorrer em dupla valoração (bis in idem).
O motivo fútil e o motivo torpe, por exemplo, aparecem como
agravante genérica no art. 61, inciso II, alínea a, do Código Penal.
Portanto, se o motivo do agente, ao cometer uma infração, foi fútil ou torpe,
não poderá sopesá-lo o Magistrado como circunstância judicial desfavorável,
haja vista que é agravante, portanto, computada apenas na segunda fase da
dosimetria.
Da mesma forma, se o crime cometido por motivo torpe ou fútil
for o homicídio, a motivação caracterizará qualificadora, prevista no art. 121,
§2º, inciso I ou II, respectivamente, do Código Penal, não podendo, também, ser
valorada como circunstância judicial negativa.
É possível, ainda, citar o exemplo do motivo de relevante
valor social ou moral que, em regra, será atenuante (art. 65, III, alínea a,
do Código Penal); e, excepcionalmente, poderá caracterizar causa de diminuição
da pena no crime de homicídio (art. 121, §1º, do CP) e de lesão corporal (art.
129, §4º, do mesmo codex). Nestes casos, por evidente, a motivação
jamais poderá ser valorada em desfavor do condenado.
Das circunstâncias da
infração penal
Por circunstâncias da infração penal, indicadas no artigo 59,
do Código Penal, entendem-se todos os elementos do fato delitivo, acessórios ou
acidentais, não definidos na lei penal61.
Compreendem, portanto, "as singularidades
propriamente ditas do fato e que ao juiz cabe ponderar" 62.
Alberto Silva Franco sugere que, na análise das
circunstâncias do delito, o Juiz analise: "o lugar do crime, o tempo de
sua duração, o relacionamento existente entre autor e vítima, a atitude
assumida pelo delinqüente no decorrer da realização do fato criminoso"63
e Gilberto Ferreira acrescenta a esses fatores a maior ou menor insensibilidade
do agente e o seu arrependimento64.
Com base nessa definição, é mais censurável a conduta do
agente que matou alguém na igreja ou na casa da vítima do que aquele que a
matou em sua própria casa. Por outro lado, é menos censurável o agente que se
demonstrou sinceramente arrependido da prática delitiva do que aquele que
comemorou o evento embriagando-se65.
Mister destacar que, para fins de fixação da pena-base, as
circunstâncias, no concurso de pessoas, só se comunicam ao co-autor no caso de
ele conhecer a sua ocorrência66. Isso se deve à determinação do art.
29, do Código Penal que reza que o indivíduo só pode responder pelo crime, na
medida de sua culpabilidade.
Não se pode esquecer, também aqui, de evitar o bis in
idem pela valoração das circunstâncias que integram o tipo ou qualificam o
crime, ou, ainda, caracterizam agravante ou causa especial de aumento de pena.
Assim, o número de tiros ou golpes de faca, no homicídio
simples, pode ser avaliado como circunstância. Já, o fato de o agente ter
assassinado a vítima com o emprego de veneno, não; pois configura qualificadora
do crime nos termos do art. 121, §2º, III, do CP.
Algumas vezes, a constatação de que determinada circunstância
já é inerente ao tipo penal não decorrerá da simples leitura do dispositivo
legal e o Magistrado necessitará um pouco mais de cuidado nesse estudo.
Por exemplo, no crime de omissão de recolhimento de
contribuições previdenciárias (art. 168-A, do CP), não poderá o Juiz aumentar a
pena pela circunstância de contar o réu com assessoria contábil, posto que, de
um estudo mais criterioso, esse fato é normal ao tipo penal67.
Se assim pudesse ocorrer, a sentença nada mais estaria
fazendo do que reafirmando a ocorrência do crime. Nesse norte, o STJ reformou a
pena aplicada ao advogado condenado pelo crime de apropriação indébita em razão
da profissão (art. 168, §1º, III, do CP), que teve a sua pena-base fixada acima
do mínimo legal porque a análise dos motivos e das circunstâncias do crime como
desfavoráveis ocorreu com fundamento em elementos comuns ao próprio tipo penal.
O Acórdão, da lavra do eminente Ministro Gilson Dipp e publicado recentemente,
corrigiu o lapso daquela sentença monocrática: "As circunstâncias
judiciais relativas aos motivos (‘desejo de possuir mais do que lhe pertence
por direito’) e às circunstâncias do crime (‘recebimento do numerário, na
condição de advogado da vítima, sem o correspondente repasse’) não podem ser
consideradas para aumentar a pena-base, pois se encontram ínsitas ao próprio
tipo penal" 68.
Não basta, no entanto, que a circunstância não esteja
prevista na lei. Ela deve ser relevante e indicar uma maior censurabilidade à
conduta praticada pelo condenado.
Não atendem a essa finalidade as justificativas imprecisas,
na sentença, do tipo: "agiu de modo bárbaro", "agiu com
exagero", etc...
Faz-se necessário precisar os fatos concretos, provados nos
autos, que caracterizem as circunstâncias do crime, valoradas positiva ou
negativamente.
A sentença que não fundamenta sua valoração das
circunstâncias do crime ou que não indica os elementos dos autos que formaram o
convencimento do Juiz quanto a essa valoração padece de nulidade.
Das conseqüências da infração penal
O dano
causado pela infração penal, na lição de Gilberto Ferreira, pode ser material
ou moral. Será material quando causar diminuição no patrimônio da vítima, sendo
suscetível de avaliação econômica. Por outra banda, o dano moral implicará dor,
abrangendo tanto os sofrimentos físicos quanto os morais69.
No exame
das conseqüências da infração penal, o Juiz avalia a maior ou menor intensidade
da lesão jurídica causada à vítima ou a seus familiares70.
No
entanto, cumpre lembrar o ensinamento de Paganella Boschi de que devem ser
sopesadas apenas as conseqüências que se projetam "para além do fato
típico", sob pena de incorrer-se em dupla valoração71.
Dessa
forma, não se pode considerar como conseqüência desfavorável do crime de
homicídio, a perda de uma vida, posto que inerente ao tipo penal. Contudo,
pode-se utilizar, nesta etapa da dosimetria, o fato de o agente ter ceifado a
vida de um pai de família numerosa, o que é mais censurável do que a conduta
daquele que assassinou uma pessoa solteira.
De igual
modo, no crime de omissão de recolhimento de contribuição previdenciária, o
prejuízo causado à Previdência Social integra o tipo e já está devidamente
censurado pela pena cominada72, até mesmo no mínimo legal.
O Supremo
Tribunal Federal também já decidiu que, em crime de responsabilidade de
prefeito, a justificativa de que o crime "causou prejuízos que
dificilmente serão recompostos" configura característica inerente a
todo dano dessa espécie, assim como o "prejuízo de monta", já
que "não reveladores de conseqüência específica do crime, diversa dos
efeitos produzidos pela lesão patrimonial que constitui a materialidade do
delito punido" 73.
José
Eulálio de Almeida74 e Adalto Dias Tristão75 referem-se,
ainda, ao clamor público causado pela infração penal na ponderação das
conseqüências. Todavia, há que se considerar o fato de que o clamor público nem
sempre se dá em razão da gravidade do delito, mas, por outros motivos como, por
exemplo, o prestígio ou a posição social do agente ou da vítima; ou, ainda, o
interesse circunstancial da imprensa na divulgação do delito. Portanto, o
clamor público, por si só, não pode ser considerado como conseqüência
desfavorável ao agente, porque não traduz, necessariamente, um juízo de maior reprovação
da conduta. Ocorrem muitos delitos merecedores de grande censura que só não
causam clamor público por um fator "de sorte". Por isso, melhor é o
entendimento da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná,
manifestado no julgamento da Apelação Criminal nº 63286-0. Consta da ementa do
v. Acórdão, da lavra do i. Desembargador Nunes do Nascimento:
Textos relacionados
- Direito Penal Econômico: questionamentos a uma nova dogmática penal
- Injúria em reality show: inexigibilidade de conduta diversa. Reflexões a partir de caso ocorrido no Big Brother Brasil 12
- STF, aborto de fetos anencéfalos, ADPF 54 e legislador positivo
- O sistema acusatório e a iniciativa probatória do juiz (art. 156, inciso I, CPP)
- A ação penal nas lesões leves praticadas em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher após a apreciação do tema pelo Supremo Tribunal Federal
"…Sem obstância, a mesma sentença torna-se claramente
inadequada no tópico em que aplica a reprimenda equivalente ao dobro do mínimo
para a ocultação de cadáver, justificando a exacerbação com a repercussão que o
crime causou na sociedade e na mídia, pois é certo que esse fundamento não está
elencado no rol do art. 59" 76
Já, no que tange aos crimes de perigo, o exame das
conseqüências deve ser feito a partir da intensidade do perigo de dano77.
Finalmente, não pode o Magistrado, simplesmente, utilizar-se
de singelos argumentos, como, por exemplo, a ocorrência de "conseqüências
de monta". Deve, também aqui, tomar o máximo cuidado para deixar muito
bem fundamentada a análise das conseqüências, embasando sua valoração em fatos
concretos e provados (não presumidos) nos autos.
Do comportamento da vítima
Inovação trazida com a Reforma da Parte Geral do Código
Penal, em 1984, esta circunstância judicial reafirma a crescente importância da
vitimologia no Direito Penal atual.
Na valoração da última circunstância judicial "é
preciso perquirir em que medida a vítima, com a sua atuação, contribuiu para a
ação delituosa. Muito embora o crime não possa de modo algum ser justificado,
não há dúvida de que em alguns casos a vítima, com o seu agir, contribui ou
facilita o agir criminoso, devendo essa circunstância refletir favoravelmente
ao agente na dosimetria da pena" 78.
Quando a vítima instiga, provoca, desafia ou facilita a
conduta delitiva do agente, diz-se, portanto, que a oitava circunstância
judicial está favorável ao réu. Nesses casos, a vítima teve participação
efetiva na culpabilidade do autor, posto que enfraqueceu a sua determinação de
agir conforme o Direito. Logo, por conseqüência, merece o agente, nessa
situação, uma censura penal mais branda do que a que lhe caberia nos casos de
ausência total de provocação da vítima79.
Nos crimes patrimoniais, por exemplo, tem diminuída a sua
capacidade de se comportar de acordo com o ordenamento jurídico o agente que
pratica furto de veículo, cujo proprietário adentrou a um estabelecimento
comercial próximo para fazer compras, deixando seu carro estacionado em via
pública, com as janelas abertas, as portas destravadas e a chave na ignição,
numa região onde isso não costuma ocorrer. A censurabilidade, portanto, de sua
conduta é menor do que a do ladrão que premedita o furto de um automóvel.
Fernando Galvão assevera que "juridicamente, não se
pode reprovar a conduta do proprietário que deixa a porta de sua casa
aberta" e que, no entanto, quando este comportamento da vítima
resultar em estímulo à prática da infração, deve ser sopesado para minorar a
resposta penal ao autor do fato80.
Nos crimes contra os costumes, por sua vez, conforme leciona
o Professor Túlio Lima Vianna, não será considerado favorável ao agente o
comportamento da vítima pela "mera roupa provocante com a qual desfila
a moça em local ermo, pois ninguém é obrigado a trajar-se com recato"
81. Por outro lado, a moça que aceita ir ao motel com um rapaz e lá,
desiste da relação no último momento, certamente contribui para a prática do
estupro, concluindo o autor que: "a clara diferença entre os dois
comportamentos das vítimas está na absoluta passividade do primeiro e na
atividade do segundo". Aliás, o pouco recato da vítima nos crimes
contra os costumes mereceu expressa referência na Exposição de Motivos da Nova
Parte Geral do Código Penal (item 50).
Desse modo, quando o comportamento da vítima contribuiu para
a prática do delito, esta circunstância será valorada, pelo Juiz, a favor do
condenado. Ao revés, se não contribuiu, lhe será desfavorável.
Contudo, deve o Magistrado ficar atento, pois há espécies de
delitos em que, por sua natureza, a vítima nunca poderá provocar o agente, e,
nesses casos, deve ser ignorada essa circunstância judicial para fins de
recrudescimento da pena.
Exemplo disso ocorre nos delitos de sonegação fiscal e de uso
de substância entorpecente, onde a vítima (Fazenda Pública e coletividade,
respectivamente) não tem qualquer possibilidade fática de provocar ou facilitar
a conduta do agente.
Finalmente, há que se observar que provocação da vítima não
se confunde com agressão. A agressão da vítima, na maioria das vezes, poderá
gerar situação de legítima defesa, o que ocasionará a exclusão da ilicitude,
sem que se chegue, portanto, à aplicação de uma pena.
Haverá casos, ainda, em que a injusta provocação da vítima
caracterizará causa de diminuição de pena, a ser sopesada somente na terceira
etapa da dosimetria, como ocorre no homicídio (art. 121, §1º, do CP) e nas
lesões corporais (art. 129, §4º, do CP).
Informações sobre Juliana de Andrade Colle
advogada
criminalista em Curitiba (PR), professora de Direito Penal na Faculdade de
Direito de Curitiba e no Curso Jurídico
0 Comentários