A Lei n.º 13.608, de 10 de Janeiro de
2018, criou o instituto do “Whistleblower”?
O Whistleblower (ou “soprador do
apito”) refere-se à hipótese, por meio da qual o cidadão, não envolvido na
atividade criminosa, resolve auxiliar e “denunciar” irregularidades administrativas
e ilícitos criminais às autoridades públicas, recebendo, em contrapartida, uma
retribuição financeira intitulada “recompensa” ou “´prêmio”.
Por intermédio de minucioso estudo sobre o
tema no famigerado “caso HSBC Suíço”, prelecionou DE GRANDIS :
‘O whistleblower
– ou, simplesmente, denunciante ou informante – é aquele que, ao tomar conhecimento de uma irregularidade ou de um
crime concretizado no âmbito de sua atividade profissional, “toca o apito”, ou
seja, comunica a ocorrência às autoridades competentes, como a polícia ou o
Ministério Público, embora não tenha nenhuma obrigação legal nesse sentido.No
caso do HSBC suíço, quem “tocou o apito” e entregou uma imensidão de dados
bancários de diversas pessoas físicas e jurídicas em situação aparentemente
criminosa foi o cidadão franco italiano Hervé Falciani, funcionário da área de
informática do HSBC de Genebra. Falciani é uma figura controvertida. A
Suíça o acusa de agir em interesse próprio e na busca de lucro, argumentando
que ele extraiu dados bancários ilegalmente para tentar vendê-los
posteriormente a instituições financeiras libanesas. Outros, contudo,
consideram Falciani um herói inspirado por sentimentos nobres e altruístas.
Seja como for, ao denunciar o esquema existente no HSBC de Genebra, Hervé
Falciani gerou investigações criminais relacionadas a lavagem de dinheiro e a
sonegação fiscal na Inglaterra, Espanha, Itália, Bélgica e na Grécia (...)‘ (grifos
acrescidos).
É uma figura jurídica utilizada nos Estados
Unidos da América (EUA) e Europa, tendo sido recomendado pela ENCLA como
uma das formas de combate à corrupção.
Vale destacar que o Programa de Proteção e
Incentivo ao Whistleblower foi fruto de debates na Ação 4/2016
da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla),
cujo entendimento ficou consignado na seguinte forma:
”Whistleblower, em
tradução literal, é o assoprador de apito. Na comunidade jurídica
internacional, o termo refere-se a toda pessoa que espontaneamente leva ao
conhecimento de uma autoridade informações relevantes sobre um ilícito civil ou
criminal. As irregularidades relatadas
podem ser atos de corrupção, fraudes públicas, grosseiro desperdício de
recursos público, atos que coloquem em risco a saúde pública, os direitos dos
consumidores etc. Por ostentar conhecimento privilegiado sobre os fatos,
decorrente ou não do ambiente onde trabalha, o instituto jurídico do
whistleblower, ou reportante, trata-se de auxílio indispensável às autoridades
públicas para deter atos ilícitos. Na grande maioria dos casos, o reportante é
apenas um cidadão honesto que, não tendo participado dos fatos que relata,
deseja que a autoridade pública tenha conhecimento e apure as irregularidades. Com
base nesse conceito, a Enccla, por meio da Ação 4, cuja meta é “elaborar
diagnóstico e proposição de aprimoramento do sistema brasileiro de proteção e
incentivo ao denunciante e whistleblower”, tem realizado vários encontros com o
propósito de alcançar o melhor entendimento sobre a matéria por meio de
apresentações, de estudos comparados e aplicados à realidade jurídica nacional,
ao tempo em que tem elaborado um anteprojeto de lei (APL) que incentive a
proteção do cidadão que reportar a uma autoridade pública a ocorrência de atos
ilícitos, ainda que omissivos, a exemplo daqueles que violem dever legal
expresso, ou que de qualquer forma atentem contra o patrimônio público, criando
proteção e incentivos à participação da sociedade na apuração de fraudes públicas
e ofensa a normas legais”
Com efeito, o instituto representa, mutatis mutandis, importante inovação e modernização no sistema jurídico
brasileiro, malgrado já tivesse sido previsto no artigo 33 da Convenção da Nações Unidas para o Combate à Corrupção, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em
2003, in verbis:
‘Cada Estado Parte considerará a possibilidade de incorporar em seu
ordenamento jurídico interno medidas apropriadas para proporcionar proteção
contra todo trato injusto às pessoas que denunciem ante as autoridades
competentes, de boa-fé e com motivos razoáveis, quaisquer feitos relacionados
com os delitos qualificados de acordo com a presente Convenção’.
Ademais, a figura jurídica é denominada “reportante
do bem”, porquanto traz informações benéficas e necessárias à elucidação de
ilícitos administrativos e criminais, diferindo, contudo, do “colaborador” na “colaboração
premiada”, porquanto nesta o colaborador encontra-se envolvido na atividade
criminosa, e, ao tempo em que admite sua participação nos fatos, decide “delatar”
os outros envolvidos (partícipes e coautores) até então desconhecidos da
organização ou atividade criminosa.
Nesse ponto, lecionam Luiz Flávio Gomes e
Marcelo Rodrigues da Silva:
“
É pressuposto da colaboração premiada a confissão do agente, conforme já
decidiu o Superior Tribunal de Justiça. Aquele que simplesmente aponta a
responsabilidade de terceiros é um informante ou testemunha, mas não um
investigado ou réu colaborador. Nisso reside a figura do whistleblower (delator
externo e externo porque não participou do crime)” (grifos acrescidos, p.240)”
A
Lei n.º 13.608/2018
expressamente previu, em prol do “denunciante” que revelar ilícitos
administrativos e criminais, o recebimento de “recompensa” ou “prêmio”, como
forma de estimular a efetivação de “denúncias” (fornecimento de dados,
documentos e informações relevantes) benéficas ao desbaratamento de atividades
ilícitas.
Saliente-se o fato de que a legislação estabeleceu
o sigilo do denunciante, com o intuito de resguardar sua integridade
física, e livrá-lo de represálias, in verbis:
“(...) Art. 3º O informante que se
identificar terá assegurado, pelo órgão que receber a denúncia, o sigilo dos
seus dados.
Art. 4o A
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas
competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo
oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a
apuração de crimes ou ilícitos administrativos.
Parágrafo único. Entre as
recompensas a serem estabelecidas, poderá ser instituído o pagamento de
valores em espécie.
Ressalte-se, ainda, que a
providência legislativa alterou a Lei
n.º 10.201, de 14 de fevereiro de 2001, a qual instituiu o Fundo Nacional
de Segurança Pública- FNSP, nos seguintes termos :
“Art. 4o O
FNSP apoiará projetos na área de segurança pública destinados, dentre outros,
a: (Redação
dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)
I - reequipamento, treinamento e qualificação das
polícias civis e militares, corpos de bombeiros militares e guardas
municipais; (Redação
dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)
II - sistemas de informações, de inteligência e
investigação, bem como de estatísticas policiais; (Redação dada pela Lei nº 10.746, de 10.10.2003)
III - estruturação e modernização da polícia técnica
e científica; (Redação dada pela Lei nº
10.746, de 10.10.2003)
IV - programas de polícia comunitária; e (Redação dada pela Lei nº
10.746, de 10.10.2003)
V - programas de prevenção ao delito e à
violência. (Redação dada pela Lei nº
10.746, de 10.10.2003)
VI -
serviço telefônico para recebimento de denúncias, com garantia de sigilo para o
usuário; (Incluído pela Lei nº 13.608,
de 2018)
VII -
premiação, em dinheiro, para informações que levem à resolução de crimes. (Incluído pela Lei nº 13.608,
de 2018)’
Por outro lado, em que pesem eventuais críticas
no sentido de que a Lei de regência tenha previsto apenas premiações e
recompensas no famigerado programa “disque denúncia”, vale registrar que foram introduzidas
inovações relevantes ao instituto do “whistleblower”, ainda que com hipóteses
distintas das previstas nas legislações Norte-Americanas e Europeias.
Indaga-se, porém, como ficaria a tutela de
direitos dos investigados, quando incidentes os crimes de calúnia ou
denunciação caluniosa, diante do sigilo imposto legalmente? Ora, ao mesmo tempo
que foi determinado o “aspecto sigiloso” das informações, a vítima (ou
ofendido) poderá requerer o “levantamento” deste, mediante requerimento à
autoridade administrativa, no legítimo exercício do direito de petição (artigo
5º, XXXIV, da CF/88), podendo, ainda, acionar a via do Poder Judiciário, na hipótese
de negativa administrativa (art. 5, XXV, da CF/88).
Desta forma, diante das informações relativas
à qualificação do “denunciante”, a vítima de eventuais abusos poderá intentar
ações de indenização por danos morais, sem prejuízo das ações penais cabíveis
por crimes contra a honra e à administração da justiça.
Observe-se que a inovação poderá estimular
relatos de atividades criminosas ou ilícitos administrativos, que jamais seriam
desvendados, se não houvesse o aludido estímulo por parte do Estado, possuindo,
por conseguinte, o aspecto de fomento ao exercício da cidadania.
Nos EUA, a medida possui eficácia comprovada,
conforme leciona Claudio de Abreu:
‘ O Código Tributário Federal dos Estados
Unidos da América (“EUA”) no Título 26 (“U.S. Code: Title 26 - Internal Revenue
Code ”), “Subtítulo F – Procedimento e Administração (§§ 6001 a 7884) ”,
“Capítulo 78 – Descoberta de Responsabilidade e Execução de Título (§§ 7601 a
7655) ”, “Subcapítulo B – Poderes e Deveres Geais (§§ 7621 a 7624)” , “Seção §
7623 – Despesas de detecção de pagamentos a menor e fraude, etc.” , “Subseção (b) Premiações para os denunciantes” , prevê a possibilidade de premiação ao denunciante
cujas informações resultarem em tributação adicional, penalidades e outros
montantes que deveriam ter sido recolhidos pelo sujeito passivo tributário.
Tal premiação corresponderá a um
percentual que pode variar de 15% (quinze por cento) a 30% (trinta por cento)
do total arrecadado com a denúncia. É
o denominado “Whistleblower – Informant Award Program” (“Programa de Premiação
ao Denunciante”) sob responsabilidade da “Internal Revenue Service”, a Receita
Federal dos EUA. ‘
De outro lado, a legislação brasileira difere da
legislação na Inglaterra, a qual prevê medidas de proteção contra demissões
arbitrárias relativamente aos intitulados reportantes do bem, que
fornecerem informações acerca de ilícitos perpetrados pelas empresas ou agentes
públicos.
Além disso, distingue-se da previsão Norte- Americana, a
qual expressamente trouxe parâmetros para o recebimento de recompensa até o limite de 30%(trinta) por cento da
multa decorrente do ilícito resultante do fornecimento das informações
reportadas pelo cidadão.
Distinção da denúncia anônima :
Na ”denúncia anônima”, o denunciante não apresenta seus
dados, mantendo o anonimato, seja em relação ao banco de dados, seja em relação
à autoridade a cargo da investigação.
Por seu turno, o whislomblower
é um instituto, por meio do qual o denunciante poderá se identificar perante
o respectivo banco de dados público(v.g
disque denúncia), mantendo, todavia, o
sigilo dos dados de qualificação para o público externo, exceto para as
respectivas autoridades responsáveis pela investigação (v.g: Delegado de Polícia, Membro do Ministério Público).
Com efeito, é o que dispõe o artigo 3º da Lei, verbis: ‘O informante que se identificar terá assegurado, pelo órgão que receber
a denúncia, o sigilo dos seus dados”.
Demais disso, no intuito de viabilizar o recebimento da recompensa,
faz-se mister a identificação do denunciante, no intuito de que receba o
“prêmio” em espécie ou mediante depósito devidamente identificado.
Para fins de instauração de inquérito e procedimentos administrativos
investigatórios, os dados fornecidos pelo “whistsomblower”
devem ser revestidos de um mínimo de informações concretas acerca dos fatos e autoria dos
ilícitos reportados, não sendo suficientes, por si sós, para a deflagração de
inquérito policial ou investigações antes da adoção de providências
investigativas preliminares para fins de corroboração dos supostos indícios dos
atos ilícitos, de forma análoga aos
requisitos das “denúncias anônimas”, consoante já decidido pelo STJ, in verbis:
‘( ...) Esta Corte Superior de Justiça e o Supremo Tribunal
Federal firmaram o entendimento de
que a notícia anônima sobre
eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar
procedimentos investigativos preliminares em busca de indícios que corroborem as informações, os quais tornam legítima
a persecução criminal estatal. Precedentes’(...) (STJ, 6ª Turma, HC 413160/PE, Rel. Sebastião Reis Júnior, DJe
28/11/2017).
Por outro lado, caso o cidadão
(reportante do bem ou de boa-fé) forneça
elementos comprobatórios dos atos ilícitos (documentos, vídeos, fotos, entre
outros), e sendo estes suficientes para a deflagração de uma investigação
direta, nada obstará que a autoridade policial proceda à instauração de
inquérito policial para apurar os fatos reportados, ante o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, e por
ser uma situação distinta da intitulada ‘denúncia anônima’.
A Lei não estipulou o valor do prêmio ou recompensa em favor do “whitsomblower”,
que forneça informações essenciais ao desbaratamento de ilícitos administrativos
ou criminais. Todavia, deve ser utilizado parâmetros de recompensas
proporcionais à eficácia das informações fornecidas em prol da elucidação dos
ilícitos, com fundamento no princípio da
proporcionalidade.
Conclusão :
O Whitsblower, embora não previsto no Brasil de forma
semelhante à legislação estrangeira, teve o ‘start’ providenciado pelo legislador nacional, o qual teve a intenção de
propiciar que o cidadão participasse na elucidação da efetiva persecução criminal (além de auxiliar
no esclarecimento de ilícitos administrativos), resultando na concretização do
exercício da cidadania ativa, embora ainda careça de ulterior regulamentação (por
intermédio de atos normativos a serem editados), no intuito de viabilizar a
eficácia solidificada nos EUA e na Europa.
REFERÊNCIAS :
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.São Paulo : malheiros, 2017.
ABREU,Claudio.http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI239483,71043Whistleblower+no+Direito+Tributario+NorteAmericano+Possibilidade
de . Acesso em 14 de jan/2018.
ENCLA. O que é o whistleblower? http://enccla.camara.leg.br/noticias/o-que-e-o-whistleblower.
Acesso em 15 de jan/2018
GOMES, Luiz Flávio; DA SILVA, Marcelo Rodrigues. Organizações
Criminosas e Técnicas Especiais de Investigação. Salvador: Juspodivm.
GRANDIS,
Rodrigo de. Whistleblowing e Direito Penal. Disponível em https://www.jota.info/artigos/coluna-rodrigo-de-grandis-12022015. Acesso em 14 de jan/ 2018.
MARTINS,
Jomar. https://www.conjur.com.br/2016-set-20/whistleblower-aliado-estado-combate-corrupcao. Acesso em 14 de jan/2018.
Leandro Bastos Nunes. Procurador da República. Especialista em direito penal e processo penal. Articulista. Autor da obra " evasão de divisas" ( editora juspodivm). Instrutor em cursos de atualização para servidores do Ministério Público Federal. Palestrante em crimes financeiros
0 Comentários