Transgênero tem direito à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil mesmo sem cirurgia, decide STF
O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa.
Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo “transgênero”.
Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial.
Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.
Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 761 da repercussão geral, deu provimento a recurso extraordinário em que se discutia a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual — como masculino ou feminino — independentemente da realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo (Informativo 885).
Prevaleceu o voto do ministro Dias Toffoli (relator). Este reajustou o voto proferido na assentada anterior para se adequar ao que decidido na ADI 4.275/DF (Informativo 892), no sentido de conceder aos transgêneros, e não só aos transexuais, o direito a referidas alterações, na via administrativa ou judicial, em procedimento de jurisdição voluntária.
No ponto, o relator afirmou a viabilidade de ampliação do objeto do recurso extraordinário, de modo a assegurar o direito postulado não apenas aos transexuais, mas à categoria maior, dada a contínua aproximação entre a sistemática da repercussão geral e o processo de controle concentrado de constitucionalidade, que tem permitido a adoção de características do segundo pela primeira.
Quanto ao mérito, considerou os princípios da dignidade da pessoa humana, da personalidade, da intimidade, da isonomia, da saúde e da felicidade, e sua convivência com os princípios da publicidade, da informação pública, da segurança jurídica, da veracidade dos registros públicos e da confiança.
Asseverou que a ordem constitucional vigente estabeleceu como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, voltada à promoção do bem de todos e sem preconceitos de qualquer ordem [CF, art. 3º, I e IV (1)], de forma a garantir o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos e a resguardar os princípios da igualdade e da privacidade [CF, art. 5º, “caput” e X (2)].
É imperativo o reconhecimento do direito do indivíduo ao desenvolvimento pleno de sua personalidade e a proteção dos conteúdos mínimos que compõem a dignidade do ser humano: a autonomia, a liberdade, a conformação interior e os componentes social e comunitário.
Para o relator, como inarredável pressuposto para o desenvolvimento da personalidade humana, deve-se afastar qualquer óbice jurídico que represente limitação, ainda que potencial, ao exercício pleno pelo ser humano da liberdade de escolha de identidade, orientação e vida sexual. Qualquer tratamento jurídico discriminatório sem justificativa constitucional razoável e proporcional importa em limitação à liberdade do indivíduo e ao reconhecimento de seus direitos como ser humano e como cidadão.
O sistema deve progredir e superar a tradicional identificação de sexos para também abarcar os casos daqueles cuja autopercepção difere do que se registrou no momento de seu nascimento e das respectivas conformações biológicas.
Citou os posicionamentos doutrinários e os avanços jurisprudenciais e legislativos sobre o assunto, especialmente no âmbito da América Latina, e apontou a irrazoabilidade de condicionar a mudança de gênero no assento de registro civil à realização da cirurgia de redesignação de sexo.
Observou que muitos indivíduos não querem se submeter à cirurgia por uma série de razões como o temor a ela ou aos seus resultados, a ausência de condições financeiras para realizá-la na iniciativa privada, ou mesmo a preferência por manter o órgão sexual que possuem. Acrescentou que os procedimentos para a readequação sexual têm sido realizados em prazos muito alargados e que existem dúvidas quanto a sua eficiência, para alguns profissionais, do ponto de vista da satisfação psicológica dos pacientes.
Da mesma forma, para o relator, não é possível manter um nome em descompasso com a identidade sexual reconhecida pela pessoa, que é, efetivamente, aquela que gera a interlocução do indivíduo com sua família e com a sociedade. A anotação do designativo “transexual” nos assentamentos pessoais, além de não garantir a dignidade do indivíduo, produz outros efeitos deletérios, como sua discriminação, exclusão e estigmatização.
Vencidos, parcialmente, os ministros Marco Aurélio e Alexandre de Moraes.
O ministro Marco Aurélio reiterou o voto proferido na supracitada ADI 4.275/DF, no sentido de assentar a possibilidade de ter-se, ausente a realização de cirurgia de transgenitalização, a alteração do registro, quer em relação ao prenome, quer em relação ao sexo, sendo vedada a inclusão do termo “transexual” no registro civil, desde que condicionada aos seguintes requisitos: i) idade mínima de 21 anos; e ii) diagnóstico médico de transexualismo, presentes os critérios do art. 3º da Resolução 1.955/2010 (3) do Conselho Federal de Medicina (CFM), por equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto.
O ministro Alexandre de Moraes também manteve o voto proferido na citada ADI para condicionar a alteração no registro civil a ordem judicial.
(1) CF: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...) IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
(2) CF: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
(3) Resolução 1.955/2010 do CFM: “Art. 3º Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados: 1) Desconforto com o sexo anatômico natural; 2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; 3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; 4) Ausência de outros transtornos mentais.(Onde se lê ‘Ausência de outros transtornos mentais’, leia-se ‘Ausência de transtornos mentais’).”
RE 670422/RS, rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 15.8.2018. (ADI-670422)
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