Olá, amigos!

Como pequena lembrança, trazemos a lume uma sentença de absolvição de um caso, no interior da Bahia, em que  foi utilizado, como referência, um processo do nosso, agora, saudoso jornalista, Ricardo Boechat, em que ele foi absolvido após ser condenado em 1ª instãncia.

O processo de Boechat serviu  para fundamentar a sentença de absolvição do blogueiro que foi acusado de crimes contra honra por causa da linguagem no uso liberdade de informação.

Segue parte da decisão abaixo.

Att Clécia Rocha







"PROCESSO N.º: 0001687-64.2016.8.05.0057
ESPÉCIE: QUEIXA-CRIME
QUERELANTE: XXXX
QUERELADO: XXXXX


S E N T E N Ç A:


I ¿ RELATÓRIO

Trata-se de queixa-crime instaurada por xxx  em face de xxxxXXX, ambos devidamente qualificados, em que se atribui ao último a suposta prática dos crimes CALÚNIA, DIFAMAÇÃO e INJÚRIA, previstos nos arts. 138, § 1º, 139 e 140 do Código Penal Brasileiro, em razão de publicações veiculadas no blog, de propriedade do querelado. 

De acordo com o narrado pela inicial, o querelado teria ofendido, diretamente, a honra do querelante, na condição de Vereador e Presidente da Câmara de Vereadores do Município de Heliópolis, com postagens fazendo referências e imputações ofensivas e informações sabidamente falsas acerca de suposta fraude em procedimentos licitatórios.

No entender do querelante, os fatos afirmados revelariam a falsa prática de CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (fraude em licitação), tendo essas informações sido disseminadas na rede mundial de computadores.

A inicial veio acompanhada com o instrumento de mandato com previsão dos poderes especiais para o ajuizamento da queixa-crime (evento 1.2), cópias das postagens veiculadas pelo querelado (eventos 1.4/1.5), cópia dos processos licitatórios 002/2016 e 003/2016 (eventos 1.6 e 1.7).

Foi designada audiência preliminar (eventos 5 e 7) para o oferecimento dos institutos despenalizadores da Lei 9.099/95, tendo esta sido realizada (evento 25), a qual restou infrutífera pela ausência do querelado à referida assentada. Ato contínuo, foi determinada a realização de audiência de instrução (evento 33), tendo esta sido realizada em 20/03/2018, na qual se colheu os depoimentos da vítima e da testemunha e o interrogatório do querelado. Os debates orais foram substituídos por alegações finais sob a forma de memoriais. 

O querelado apresentou suas Alegações Finais por escrito (eventos 83), postulando, em síntese, pela improcedência em razão da atipicidade dos atos publicados, entendendo se tratar de veiculações meramente informativas resguardadas pela proteção Constitucional da liberdade de expressão e de imprensa.

Noutra banda, o querelante pugnou nos termos narrados na inicial (CALÚNIA, INJÚRIA E DIFAMAÇÃO), com a incidência do aumento de pena do art. 141, III. do Código Penal Brasileiro.
Intimado o Ministério Público para emitir seu parecer, seu prazo transcorreu ¿in albis¿.
Finda a instrução, vieram os autos conclusos para prolação da sentença.

É O BREVE RELATÓRIO.

II FUNDAMENTAÇÃO 

Em que pese a argumentação do ilustre Advogado do querelante, razão assiste  à Defesa ao propor, com fundamentação irrespondível, a improcedência da ação penal. Cuidam-se dos crimes tipificados arts. 138, § 1º, 139 e 140 do Código Penal Brasileiro, que se caracterizam, respectivamente, pelas condutas de: ¿Calúnia: Art. 138 ¿ Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime¿; ¿Difamação: Art. 139 ¿ Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação¿; ¿Injúria: Art. 140 ¿ Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro. Exceto pela Calúnia, pelas descrições do tipo, não se exige, sob o aspecto objetivo, que o fato ofensivo imputado seja falso. Mas, não tenho dúvida de que questão da falsidade da imputação deve ser apreciada, em conjunto, na análise do elemento subjetivo (dolo). É sabido que os delitos dessa natureza somente se aperfeiçoam, sob o prisma subjetivo, quando evidenciado o ânimo de caluniar, difamar ou injuriar. 

Segundo a doutrina: ¿Não há o delito quando o sujeito pratica o fato com ânimo diverso, como ocorre nas hipóteses de 'animus narrandi', 'criticandi', 'defendendi', 'retorquendi', 'corrigendi' e 'jocandi'¿ (DAMÁSIO DE JESUS ¿ Código Penal Anotado, Saraiva, 19ª Ed., pág. 487).

¿O dolo, considerado como vontade consciente e livre de praticar as condutas incriminadas, revela-se (...) como o dado de subjetividade prevalecente. Em algumas hipóteses, além do dolo, exige-se que o agente, ao realizar a figura criminosa, esteja possuído por uma especial carga anímica, como se observa nos crimes de calúnia, difamação, injúria etc.¿ (ALBERTO SILVA FRANCO e outros ¿Leis Penais Especiais e sua interpretação jurisprudencial¿, RT, pág. 1.166).


A jurisprudência caminha no mesmo sentido:
¿Crime contra a honra, em qualquer de suas modalidades (...) não pode existir senão com o dolo específico que lhe é inerente, isto é, a vontade consciente de ofender a honra ou a dignidade alheias¿ (JUTACRIM 34/315).
¿O 'animus narrandi' como os outros 'animi' exclui o elemento subjetivo específico do crime contra a honra, isto é o propósito mau, a vontade perversa de difamar ou injuriar¿ (JUTACRIM 15/289).
¿Ausente o elemento subjetivo, ou seja, o 'animus calumniandi, diffamandi vel injuriandi', verificando-se apenas o 'animus narrandi', não se configuram os delitos... (RT 527/381 e JUTACRIM 46/258). 

Em tais condições, a questão da falsidade do fato imputado (e a ciência desta circunstância por parte do suposto ofensor), não pode passar à margem de qualquer consideração, quando se está a perquirir da ocorrência do dolo de ofender. Pois bem, no caso em exame há inúmeras circunstâncias que levam ao convencimento de que o querelado não agiu impelido pelo ânimo de difamar o querelante, mas com a intenção de narrar e denunciar os fatos, bem como de criticar o modo de proceder do então Vereador e Presidente da Câmara Municipal de Heliópolis, tudo com vistas informar, via seu veículo de comunicação (blog), sobre os . 

A veiculação da matéria questionada se deu por meio do site do querelado hospedado no endereço eletrônico XXXX segundo consta da narrativa e documentos juntados na inicial. A manchete publicada em 20 de julho de 2016, traz como título: ¿Ana Dalva e Ronaldo denunciam Giomar¿. Como conteúdo, a matéria informa sobre denúncia realizada pelos aludidos vereadores junto ao Ministério Público local em face do querelante em razão das dispensas de licitações 002/2016 e 003/2016, que suposta e sinteticamente não teriam sido efetuadas ao rigor da Lei das Licitações.
O querelado, em que pese a negativa genérica da resposta à queixa, em verdade não nega a autoria dos fatos, já que reconhece ser o dono do blog e responsável pela publicação. Contudo, não são estes o objeto da controvérsia, mas sim, a atipicidade da conduta. Portanto, o que se discute é se o querelado, agiu dentro dos limites constitucionais da liberdade de expressão (Arts. 5.º, IX e 220, ambos da CRFB), ou, se por outro lado, houve abuso desse direito invadindo a honra e a imagem alheia (Art. 5.º, X, da CRFB), dando ensejo à tutela penal por conta de suposta afronta aos arts. 138, § 1º, 139 e 140 do Código Penal Brasileiro, que tratam dos crimes contra a honra.
Resta incontroverso, inclusive por fazer parte tanto da documentação juntada com a peça acusatória como do depoimento da vítima, que os vereadores Ana Dalva Batista Reis e Ronaldo de Santana Santos protocolaram junto ao Ministério Público da Comarca de Cícero Dantas-BA, representação contra o então Presidente da Câmara Municipal de Heliópolis, ora querelante, com a alegação de fraude à licitação. É o que se infere do depoimento do querelante em juízo, vejamos:

¿QUE os vereadores Ronaldo e Ana Dalva denunciaram o declarante no Ministério Público sob a alegação de fraude à licitação e com base nisso o autor do fato passou a divulgar a referida denúncia protocolada no MP, contudo, antes mesmo de ser protocolado no MP, o autor do fato já havia divulgado as informações referentes à referida denúncia no seu blog¿

Não assiste razão ao querelante as afirmações que as publicações se deram antes do próprio protocolo da representação no Ministério Público, já que pelos próprios documentos acostados pelo querelado (eventos 1.4 e 1.5) a referida publicação data de 20 de julho de 2016, enquanto a representação junto ao Órgão Ministerial se deu em 05 de julho de 2016, conforme se denota dos documentos acostados no evento 81.2.
Dessa forma, ao veicular matéria apontando a existência de denúncia de outros vereadores (Ana Dalva Batista Reis e Ronaldo de Santana Santos), contra o querelante, o querelado apenas publicita fatos da vida política do Município de Heliópolis, até porque a publicidade é um dos princípios norteadores da Administração Pública, e, não havendo dúvida que a denúncia junto ao Ministério Público de fato existiu, abonada está a versão do querelado, no sentido que agiu apenas com o intuito de prestar informações jornalísticas.
Não há que se falar, portanto, dos crimes de calúnia e de difamação, uma vez não vislumbro o dolo específico de se imputar crime ao querelante por parte do querelado, mas, tão somente o compromisso para com a informação e o uso adequado da liberdade de expressão e de imprensa.
Em que pese a petição inicial não discernir, individualmente, onde e como se deu a tipicidade de cada uma das condutas, pelo desenrolar da instrução, objetiva-se que a acusação de injúria paira sobre a adjetivação de ¿ególatra¿, dada pelo querelado ao querelante em uma de suas publicações. Nesse ponto, novamente, há que se dar ensejo às alegações da defesa, uma vez que apesar de ácida a expressão, os termos utilizados não conduzem à conclusão que o querelado tenha tido o animus de injuriar o querelante.
A utilização do termo “ególatra” não é suficiente para o reconhecimento da configuração do tipo penal da injúria, pois se trata de uma palavra da língua portuguesa com o seguinte significado abaixo:

Ególatra: adjetivo Que se refere a egolatria. Diz-se da pessoa que é excessivamente egocêntrica; que idolatra o próprio eu.(https://www.google.com/search?q=egolatra&ie=utf-8&oe=utf-8)

Egolatria Significado de Egolatria Egoísmo Entendendo o que é egolatria Ego, em latim, significa EU. Na psicanálise, EGO é a personalidade da pessoa; a experiência que ela tem de si mesma; o eu de qualquer indivíduo. O radical grego latria denota culto ou adoração. Egolatria é, portanto, a adoração do próprio eu. O elemento ego é o mesmo usado nas palavras: egocêntrico (que, ou quem tem no seu próprio EU o centro de todo interesse); egoísta (que trata apenas de seus interesses); egotista (aquele quem tem o hábito de falar ou escrever em excesso sobre si mesmo) e ególatra (que cultua a si próprio). Relacionamos, a seguir, uma série de afirmações de caráter restritamente egoísta, as quais poderão servir como uma espécie de ?juiz? para a própria consciência norteada pelo egocentrismo. Jaime Nunes Mendes Data: 11/11/2006 https://www.dicionarioinformal.com.br/egolatria/)


Observo, assim, que a utilização do termo ególatra, uma proparoxítona, e, erroneamente, pronunciada por alguns na audiência de instrução, assim como, diga-se de passagem, muitos causídicos pronunciam o tal “impugno” de forma equivocada, não é suficiente para o reconhecimento da configuração do tipo penal da injúria (art. 140 do CP), por estar na ideia do animus narrandi do caso, que o interesse público exigia. Ao contrário, a mencionada palavra serve é para enriquecer nosso vocabulário.
No caso concreto, a liberdade de expressão do blogueiro, ora querelado, deve ser prestigiada porque se trata de direito fundamental previsto no art. 5º, IX, da CF/88.

Não à toa, o TJGO absolveu o festejado jornalista Ricardo BOECHAT, que utilizou de expressões muito mais ácidas para criticar servidores públicos, oportunidade em os chamou de “Zé Bunda”, durante um programa de rádio.

Eis o decisum: 


Turma Recursal da 8a Região TJGO: RÁDIO E TV BANDEIRANTES DO RIO DE JANEIRO RICARDO EUGÊNIO BOECHAT ANA LÚCIA KERPEN SOUZA LOURIVAL JOSÉ DOS SANTOS IGI IA DF OI (...)RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. JORNALISTA E EMPRESA DE COMUNICAÇÃO. LIBERDADE DEEXPRESSÃO. DIREITO DE INFORMAÇÃO E DE CRÍTICA. ABUSO NÃO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE ATO ILÍCITO. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. EXPÕE FATOS E VEICULA OPINIÃO EM TOM DE Crítica - CIRCUNSTÂNCIA QUE EXCLUI O INTUITO DE OFENDER - AS EXCLUDENTES ANÍMICAS COMO FATOR DE DESCARACTERIZAÇÃO DO "ANIMUS INJURIANDI VEL DIFFAMANDI" - AUSÊNCIA DE ILICITUDE NO COMPORTAMENTO DO PROFISSIONAL DE IMPRENSA - INOCORRÊNCIA DE ABUSO DA LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO CARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DO REGULAR EXERCÍCIO DO DIREITO DE INFORMAÇÃO - O DIREITO DE CRlTICA, QUANDO MOTIVADO POR RAZÕES DE INTERESSE COLETIVO, NÃO SE REDUZ, EM SUA EXPRESSÃO CONCRETA, À DIMENSÃO DO ABUSO DA LIBERDADE DE IMPRENSA - A QUESTÃO DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO (E DO DIREITO DE CRÍTICA NELA FUNDADO) EM FACE DAS FIGURAS PÚBLICAS OU NOTÓRIAS - JURISPRUDÊNCIA - DOUTRINA - JORNALISTA QUE FOI CONDENADO AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO CIVIL POR DANOS MORAIS -

 IZé bunda, vai procurar, você não é bom, vocêe acha que 12 000 mil é pouco ou 24 000ou 38000 é pouco? se você merece 100.000 mil eu também acho que  você merece 100000 mil, vai pro mercado, emprego de 100.000 vai mostrar o teu talento (...)



O direito de informação é formado por uma estrutura que envolve a notícia, a crítica e os direitos de informar e ser informado. Nesse sentido, explana o juiz José Augusto Nardy Marzagão, da 4ª Vara Cível da Comarca de Atibaia São Paulo: “ A liberdade de informação e direito de crítica não comportam exclusão do uso do humor, ironias ou irreverências, do contrário, não teríamos plena liberdade de expressão e opinião, como assegurado constitucionalmente.” https://www.marcoaureliodeca.com.br/2017/06/25/liberdade-de-imprensa-versus-os-crimes-de-difamacao-e-injuria/)


(....)



Ante o exposto, ABSOLVO o querelado XXXXX com fundamento no art. 386, III do Código de Processo Penal da prática dos crimes previstos nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal.
Intimem-se pessoalmente o querelado, o querelante e o Ministério Público.
Custas, na forma da lei, pelo querelante.
P.R.I.Ba, 26 de Julho de 2018 
"
José Brandão Netto
Juiz

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