A primeira questão a saber, é qual o sistema que  Brasil adota: acusatório, inquisitivo ou misto??
A doutrina afirma que não há sistemas processuais puros, "pois há a adoção de características acusatórias e inquisitórias nos vários modelos processuais", diz Ana Flavia Messa.

Como dito, há 03 espécies de sistema do processo penal:  acusatório, inquisitivo ou misto

O sistema acusatório está diretamente ligado a um sistema constitucional democrático onde existe uma clara distinção entre cada parte que compõe o processo penal o acusador, acusado e julgador. O sistema acusatório tem como característica ter a distinção de quem acusar e quem julga e se caracteriza pela divisão das funções acusatória, de defesa e julgadora em diferentes personagens, sendo o Juiz imparcial,  o processo é público e tem direito ao contraditório. As desvantagens de sistema acusatório puro são: impunidade de criminosos, facilidade de acusação falsa, desproteção dos fracos, deturpação dos fracos, deturpação da verdade aponta Ana Flavia Messa , citando Hélio Tornaghi.
No sistema  inquisitivo, o réu é tratado como objeto do processo e não como sujeito, e as funções de acusar defender e julgar estão confiadas ao mesmo órgão. A concentração de poder dá-se nasmãos do inquisidor, com processo sigiloso e prisão cautelar como regra, age com supremacia na produção da prova.

"O sistema inquisitório, que teve seu ápice na Idade Média, nos tribunais de inquisição, caracteriza-se pela aglutinação das funções de acusar e julgar em uma mesma pessoa: o juiz. Era o mesmo juiz que colhia a prova e formulava a acusação. Não havia, portanto, separação de funções, o que comprometia, indubitavelmente, a questão da imparcialidade", afirma o advogado Daniel Lima  (https://canalcienciascriminais.com.br/sistema-processual-brasileiro-misto/).

Sistema misto ( inquisitivo garantista): Para muitos doutrinadores o sistema penal adotado no Brasil é misto, pois uma parte do código o sistema é inquisitório, mas quando se inicia a ação penal, prevalece o sistema acusatório.

Divide-se o processo em duas fases: a fase inicial inquisitorial (investigação preliminar) e o julgamento com asa garantias do sistema acusatório. Aqui, "há combinação entre punição de criminosos e promoção das garantais processuais  do acusado, evitando-se perseguições e condenação de inocentes"

No Brasil, não há uniformidade doutrinária sobre ter o nosso  CPP ter adotado o sistema misto ou sistema acusatório, prevalecendo, ligeiramente, este último, no entanto com algumas regras legais dando poderes de iniciativa instrutória ao juiz, bem como autorizando a este ter tomar algumas medidas ex offcio.  

Nesse quadra, pergunta-se o juiz detém iniciativa probatória?

De fato, concede-se ao magistrado iniciativa probatória, contudo, uma parte da doutrina assevera que há agressão ao princípio da imparcialidade, uma vez que as regras de distribuição do ônus da prova no processo penal são mais do que suficientes para a prolação de uma decisão justa. Parte da doutrina garantista afirma que tal fato gera fragilização da credibilidade do Poder Judiciário, com a minoração da imparcialidade objetiva.
Nada obstante, eis o entendimento de Guilherme de Souza Nucci, ao defender posição contrária.
Em homenagem à verdade real, que necessita prevalecer no processo penal, deve o magistrado determinar a produção das provas que entender pertinentes e razoáveis para apurar o fato criminoso. Não deve ter a preocupação de beneficiar, com isso, a acusação ou a defesa, mas única e tão-somente atingir a verdade. O impulso oficial também é princípio presente no processo, fazendo com que o juiz provoque o andamento do feito, até final decisão, queiram as partes ou não. O procedimento legal deve ser seguido à risca, designando-se as audiências previstas em lei e atingindo o momento culminante do processo,que é a prolação da sentença. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Ed. RT, 2006.


  No caso do Habeas Corpus 62054-RJ, o Supremo Tribunal Federal o julgou desprovido. Este recurso questionava a oitiva de testemunhas de ofício pelo juiz de primeira instância, com fundamento na “ busca da verdade material” e também no dispositivo previsto no caput do artigo 209 do Código de Processo Penal.
Recentemente, o STJ se manifestou sobre o tema, verbis:

No curso do processo penal, admite-se que o juiz, de modo subsidiário, possa – com respeito ao contraditório e à garantia de motivação das decisões judiciais – determinar a produção de provas que entender pertinentes e razoáveis, a fim de dirimir dúvidas sobre pontos relevantes, seja por força do princípio da busca da verdade, seja pela adoção do sistema do livre convencimento motivado.

Com efeito, dispõe o art. 156, II, do CPP:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de
 ofício: 

(…)

II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

In casu, o Juiz, após as alegações finais e tendo conhecimento de outras provas que poderiam subsidiar a formação de seu convencimento quanto aos fatos objeto da presente ação penal, tendo em vista que atuava em outros processos criminais conexos àquela, converteu o julgamento em diligência, determinando a juntada aos autos destes documentos, entre eles, documentos bancários, representações fiscais e peças de outros processos criminais, decorrentes de quebras de sigilo bancário e fiscal realizados em outras ações penais, tendo, posteriormente, aberto vistas às partes para manifestação, com a consequente reabertura de prazo para complementação de alegações finais (e-STJ fl. 898).
Em obediência ao princípio da busca da verdade e pela adoção do sistema de persuasão racional do juiz, é possível que o Magistrado, na fase processual, determine a produção de provas ex officio, desde que de forma complementar à atividade probatória das partes, como na espécie, em que o Juiz, conhecedor de elementos probatórios constantes de outras ações penais e que poderiam suprir dúvidas existentes nos autos sobre pontos relevantes para o julgamento da causa, determinou a juntada aos autos com a reabertura de prazo às partes para manifestação.
Caso o Juiz, conhecedor de tais documentos que poderiam sanar dúvidas sobre fatos constantes do procedimento criminal e colaborar para a busca da verdade, permanecesse inerte, aí sim poder-se-ia falar em quebra da imparcialidade, pois conhecedor de que sua inércia poderia beneficiar a parte contrária àquela a quem competia o ônus probatório.
Nesse sentido:
Essa atuação subsidiária do juiz na produção de provas não compromete sua imparcialidade. Na verdade, como destaca a doutrina, “os poderes instrutórios do juiz não são incompatíveis com a imparcialidade do julgador. Ao determinar a produção de uma prova, o juiz não sabe, de antemão, o que dela resultará e, em consequência, a qual parte vai beneficiar. Por outro lado, se o juiz está na dúvida sobre um fato e sabe que a realização de uma prova poderia eliminar sua incerteza e não determina sua produção, aí sim estará sendo parcial, porque sabe que, ao final, sua abstenção irá beneficiar a parte contrária àquela a quem incumbirá o ônus daquele prova. […] Também não há qualquer incompatibilidade entre o processo penal acusatório e um Juiz dotado de iniciativa probatória, que lhe permita determinar a produção de provas que se façam necessárias para o esclarecimento da verdade. […]. Consoante prevê a Exposição de Motivos do CPP, enquanto não estiver averiguada a matéria de acusação ou da defesa, e enquanto houve uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet. (DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. Editora JusPODIVM, 3ª edição, 2015, pgs. 601/602)
(…) A estrutura acusatória do processo penal pátrio impede que se sobreponham em um mesmo sujeito processual as funções de defender, acusar e julgar, mas não elimina, dada a natureza publicista do processo, a possibilidade de o juiz determinar, mediante fundamentação e sob contraditório, a realização de diligências ou a produção de meios de prova para a melhor reconstrução histórica dos fatos, desde que assim proceda de modo residual e complementar às partes e com o cuidado de preservar sua imparcialidade.
Não fora assim, restaria ao juiz, a quem se outorga o poder soberano de dizer o direito, lavar as mãos e reconhecer sua incapacidade de outorgar, com justeza e justiça, a tutela jurisdicional postulada, seja para condenar, seja para absolver o acusado. Uma postura de tal jaez ilidiria o compromisso judicial com a verdade e com a justiça, sujeitando-o, sem qualquer reserva, ao resultado da atividade instrutória das partes, nem sempre suficiente para esclarecer, satisfatoriamente, os fatos sobre os quais se assenta a pretensão punitiva (….) – RHC 58.186/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 06/08/2015, DJe 15/09/2015.
Confiram-se, ainda: RHC 61.497/TO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 10/11/2015, DJe 18/11/2015 e RHC 59.475/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/2015, DJe /06/2015.


Nesse caminhar, algumas disposições legislativas dconsagram a necessidade de uma iniciativa probatória mais ativa do juiz. Ei-las:



Art. 196. A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes.

 (…)

 Art. 209. O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes. § 1o Se ao juiz parecer conveniente, serão ouvidas as pessoas a que as testemunhas se referirem. 

(…)

 Art. 234.  Se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível. 

art. 282 (...)
§ 5º O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.   (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)



À raiz do modelo que confia ao juiz a condução do processo, inclusive no que diz respeito à iniciativa instrutória, está uma escolha política referente à concepção publicista do processo e à percepção de sua função social.
O Direito processual é ramo autônomo do direito, regido por princípios publicistas. Os objetivos da jurisdição e do seu instrumento, o processo, não se colocam com vista à parte, a seus interesses e a seus direito subjetivos, mas em função do Estado e dos objetivos deste.
A observância das normas jurídicas postas pelo direito material interessa à sociedade. Assim, o Estado tem que zelar por seu cumprimento, uma vez que a paz social somente se alcança pela correta atuação das regras imprescindíveis à convivência das pessoas. Quanto mais o provimento jurisdicional se aproximar da vontade do direito substancial, mais perto se estará da verdadeira paz social. É que magistralmente afirma ADA PELEGRINE GRINOVER, verbis: 

Trata-se da função social do processo, que depende de sua efetividade. Nesse quadro, não é possível imaginar um juiz inerte, passivo, refém das partes. Não pode ele ser visto como mero espectador de um duelo judicial de interesse exclusivo dos contendores. Se o objetivo da atividade jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, para o atingimento da paz social, o juiz deve desenvolver todos os esforços para alcançá-lo. Somente assim a jurisdição atingirá seu escopo social. O papel do juiz, num processo publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo. Deve ele estimular o contra- ditório, para que se torne efetivo e concreto. Deve suprir às deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e favorecer a par condicio. E não pode satisfazer-se com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova. (…)
Por isso, deve o juiz assumir posição ativa na fase instrutória, não se limitando a analisar os elementos fornecidos pelas partes, mas determinando sua produção, sempre que necessário e de forma complementar. A visão do Estado social não admite a posição passiva e conformista do juiz, pautada por princípios essencialmente individualistas. O processo não é um jogo, em que pode vencer o mais poderoso ou o mais astucioso, mas um instrumento de justiça, pelo qual se pretende encontrar o verdadeiro titular do direito. A pacificação social almejada pela jurisdição sofre sério risco quando o juiz permanece inerte, aguardando passivamente a iniciativa instrutória da parte. 


É como penso e como se posicionam os tribunais de forma majoritária. 

José Brandao Netto
Professor e Juiz na Ba


Referências:


Nucci. Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Interpretado.

Messa, Ana Flávia. Curso de Direito Processual Penal, Saraiva, 3a edição.

AVENA, Noberto. Manual de Direito Processual Penal, Saraiva, 3a edição.

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